DIVERGÊNCIA FORMAL SOBRE TESTAMENTO PRIVADO: UMA PROPOSTA DE CONCILIAÇÃO ENTRE O DIREITO FRANCÊS E BRASILEIRO - POR LOURIVAL DA SILVA RAMOS JÚNIOR


Paula Brito - 07/05/2024

1) Há diferença formal entre o testamento privado francês e o brasileiro relativo a bens imóveis situados no Brasil?

O § 1º do art. 1.876 do Código Civil brasileiro exige a participação de, no mínimo, 03 (três) testemunhas, como requisito essencial a validade do testamento privado, além da permissão de ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico. Dessa maneira, há possibilidade de terceiro escrevê-lo e o testador apenas assiná-lo.

Por outro lado, o art. 970 do Código Civil francês dispensa a presença de testemunhas, além de exigir que seja escrito, datado e assinado pela mão do testador, não estando sujeito a nenhuma outra formalidade. Aliás, será nulo o testamento ditado por terceiro, ainda que assinado pelo testador (https://www.actu-juridique.fr/professions/les-precautions-redactionnelles-du-testament-olographe-ou-le-controle-du-testament-olographe-par-le-notaire/).

“§ 1º [do art. 1.878 do Código Civil de 2002]. Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever”.

“art. 970 [code civil français] Le testament olographe ne sera point valable s'il n'est écrit en entier, daté et signé de la main du testateur : il n'est assujetti à aucune autre forme.”

“Art. 970 [código civil francês] O testamento olográfico não será válido se não é escrito, datado e assinado à mão do testador, não se sujeitando à nenhum outra forma” (tradução do autor).

Entretanto, quando houver circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o art. 1.879 do Código Civil brasileiro dispensa testemunhas, que “poderá” ser confirmado pelo juiz. Desse modo, será um julgamento por equidade, muito subjetivo do juiz para verificar a vontade do testamenteiro, e não por meio de legalidade, cujos aspectos formais do testamento servem de segurança e confirmação da vontade do testamenteiro.

Portanto, verifica-se que as normas civilistas sobre o testamento privado francês e brasileiros são completamente diferentes.

2) Como resolver esse conflito de normas sobre o testamento privado francês e o brasileiro relativo a bens imóveis situados no Brasil?

Ante a divergência formal entre os testamentos brasileiro e francês, a ideia mais óbvia seria afastar a regra locus regit actum (lugar regula o ato), para substituí-la pela lei do domicílio do de cujus, a fim de assegurar a declaração de vontade do testador pós morte.

O problema é que, de acordo com o direito processual brasileiro, para conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil, bem como, confirmar testamento privado, ainda que o testador seja estrangeiro, a competência judicial será brasileira, com exclusão de qualquer outra (art. 23, inciso I e II, da Lei Federal n.º 13.105/2015 – Código de Processo Civil de 2015).

A Convenção de 5 de outubro de 1961 sobre os conflitos de leis quanto à forma de disposições testamentárias, descrito abaixo:

Uma disposição testamentária será válida sempre que sua forma estiver em conformidade com as normas do direito interno: a) do lugar onde o testador a realizou, ou b) do país de nacionalidade do testador no momento em que realizou a disposição ou no momento de sua morte, ou c) de um lugar em que o testador possuía domicílio no momento em que realizou a disposição ou no momento de sua morte, ou d) do lugar em que o testador tinha sua residência habitual no momento em que realizou a disposição ou no momento de sua morte, ou e) quando estiverem incluídos imóveis, do lugar em que estes estiverem situados[1].

Embora seja possível usar a citada Convenção para resolver o mencionado conflito normativo entre as leis francesa e brasileira, há outro problema igualmente importante: a presença de testemunhas no testamento privado, corresponde a sua validade formal, ou seja, correspondem a ordem pública do sistema brasileiro.

Assim, caso fosse possível a aplicação da lei francesa com base no artigo 1º da Convenção, cujo sistema cível francês permite testamento privado sem testemunhas, implicaria uma incompatibilidade com a ordem pública brasileira, pois o direito civil brasileiro não admite, em regra, testamento privado sem testemunha. Nesse contexto, tudo indica que não se admite a aplicação daquela Convenção quando há expressa violação de ordem pública, conforme o art. 7º da Convention du 5 octobre 1961, sobre conflito de leis quanto à forma das disposições testamentárias.

Ademais, seria até possível recorrer ao Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, pois o seu art. 75 determina que, “em particular, os Estados-Membros que sejam partes na Convenção de Haia, de 5 de outubro de 1961, sobre conflitos de leis relativos à forma das disposições testamentárias continuam a aplicar as disposições desta Convenção em vez do artigo 27 deste regulamento no que diz respeito à validade quanto à forma dos testamentos e testamentos conjuntos”.

Acontece que a referida convenção não se aplica ao território brasileiro porque a norma de testamento privado francês sobre testemunha é manifestação incompatível com a norma de testamento privado brasileiro, conforme o art. 7 (“A aplicação de uma das leis declaradas “válidas” (compétentes) pela presente Convenção só poderá ser excluída se for manifestamente incompatível com a ordem pública”).

Outrossim, seguindo aquela lógica, também não se aplica o Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, onde o artigo 35 determina que “a aplicação de uma disposição da lei de um Estado designado por este regulamento só pode ser rejeitada se esta aplicação for manifestamente incompatível com a ordem pública do foro.”

Portanto, vamos verificar se há uma mitigação dessa ordem pública do testamento privado brasileiro, por meio do Superior Tribunal de Justiça brasileiro, uma vez que não parece cabível a utilização da Convenção de 5 de outubro de 1961 sobre conflitos de leis relativos à forma das disposições testamentárias, nem mesmo Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012.

3) Qual o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiro sobre testamento privado a bens imóveis situados no Brasil?

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiro tem entendimento consolidado sobre a preservação da vontade do testador. Em 2010, a 4ª turma do STJ manteve a validade do testamento particular, digitado e assinado por quatro testemunhas, das quais três o confirmaram em audiência de instrução e julgamento (REsp n. 701.917/SP, relator Min. Luís Felipe Salomão, 4ª turma, DJe de 1/3/2010).

Em 2017, o STJ não flexibilizou a confirmação de testamento particular por falta de assinatura de testador, impossibilitado de assinar por ausência de coordenação motora, implicando, por conseguinte, fundada dúvida acerca da higidez da própria manifestação de vontade do testador (REsp n. 1.618.754/MG, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe de 13/10/2017). Neste caso, configura-se um vício formal-material porque não foi assinado por quem escreveu o testamento, nos termos do § 1º do art. 1.876 do Código Civil de 2002, bem como houve dúvidas sobre a real vontade de dispor em testamento privado.

Em 2018, a 3ª turma do STJ admitiu a mitigação das formalidades de testamento particular, por meio dos chamados vícios puramente formais, de menor gravidade, afetando apenas a eficácia do testamento. No caso, somente duas testemunhas participaram no testamento particular, em divergência do art. 1.876, § 1º, do Código Civil de 2002, que exige “(...) a presença de pelo menos três testemunhas”. Mesmo assim, a 3ª turma do STJ entende como um vício puramente formal, afetando apenas a eficácia do testamento particular, uma vez que inexistente dúvida ou questionamentos relacionados à capacidade civil do testador ou sobre a sua real vontade de dispor dos seus bens na forma constante na cédula ológrafa, denominada de vício formal-material (REsp 1.583.314/MG, 3ª Turma, DJe 23/08/2018).

Em 2022, a 3ª turma do STJ aceitaria, a contrario sensu, a validade de testamento particular, se tivesse a declaração das circunstâncias excepcionais de ausência de testemunhas na cédula, nos termos do art. 1.879 do Código Civil, assim como a apuração adequada sobre a veracidade da assinatura do testador (REsp n. 2.005.877/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, DJe de 1/9/2022).

Por fim, a 2ª seção do STJ mitigou a exigência de assinatura prevista no § 1º e § 2º do art. 1.876 do Código Civil de 2002, quando admitiu válido um testamento particular “assinado” apenas com a impressão digital da falecida, pois não havia dúvidas a respeito de sua última manifestação de vontade, nem quanto à restrição cognitiva da testadora, ou seja, sabia o que estava fazendo (REsp n. 1.633.254/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 11/3/2020, DJe de 18/3/2020).

Verifica-se, portanto, que o STJ interpretar as normas sobre testamento privado brasileiro com o intuito de manter a vontade do testador, apesar de vícios puramente formais em testamento hológrafo, flexibilizando a presença de testemunhas, as quais têm natureza instrumentárias. Contudo, não se olvide que o STJ apenas flexibilizou a interpretação, mas permitiu a exclusão de todas as testemunhas do testamento privado brasileiro.

4) Se tomar a jurisprudência do STJ brasileiro a respeito da mitigação de testamento privado para aceitar a aplicação de testamento francês dispondo sobre bem imóvel localizado no Brasil, então será possível afirmar que será aplicado a lei francesa em território brasileiro?

A competência jurisdicional reflete a soberania de um país, uma vez que deverá ser exercida dentro do seu território nacional, sem violação por qualquer outro Estado soberano. Tanto é verdade, que a elaboração de tratados e convenções internacionais tem diversas etapas, até sua aceitação interna pelos Estados soberanos.

Entretanto, há algumas exceções à soberania, a exemplo de normas tributárias, de arbitragem e de direitos humanos. Não obstante, mesmo com tais exceções, deve ser observado princípio gerais adotados pelo Brasil, tais como: os bons costumes e a ordem pública. A título de ilustração, temos a Lei Federal n. 9.307/1996, que dispõe sobre a arbitragem, cujo art. 2º, § 1º, permite que as partes escolham, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública.

Pois bem, o inciso I do art. 23 do Código de Processo Civil de 2015 determina que compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra, conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil. Logo, trata-se de uma questão de ordem pública porque será uma confirmação de testamento particular (inciso II do art. 23 do Código de Processo Civil de 2015), ainda que lavrada em país estrangeiro, referente a imóveis situados no Brasil.

Nesse contexto, é possível concluir, ao menos teoricamente, que, se a Convenção sobre testamento privado e o Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho não conseguem mitigar as normas internas brasileira, ficará sem eficácia o testamento ológrafo francês no território nacional brasileiro, referente a imóveis no Brasil, por não observar norma de ordem pública brasileira, ainda que o Superior Tribunal de Justiça adote uma interpretação menos rigorosa de confirmação de testamento privado brasileiro (arts. 1.876 até 1.880).

Talvez para superar a rigidez do Código Civil de 2002, será preciso analisar as normas da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, regulamentada pelo Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, alterada pela Lei Federal n. 12.376/2010, para verificar se ainda há impedimento à confirmação de testamento privado francês, dispondo sobre imóvel situado no Brasil.

5) Nesse contexto, há uma normativa interna brasileira que permita a aplicação de lei estrangeira na confirmação de testamentos privados estrangeiro de imóveis situados no Brasil, desde que não viole norma de sua ordem pública e os seus bons costumes?

Note-se a sutileza da pergunta: o art. 23, inciso I e II, do Código de Processo Civil brasileiro de 2015, define a competência da jurisdição brasileira, excluindo qualquer outra competência de país estrangeiro. Assim, ipso facto, exclui-se também a aplicação de lei estrangeira, salvante previsão legislativa em contrário, a exemplo da Lei de Arbitragem (Lei n.º 9.307/1996) e o Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho.

No Brasil, o § 1º do art. 2º da Lei de Arbitragem permite às partes escolher livremente as regras de direito a serem aplicadas. Na França, o art. 22 do Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, também permitem a escolha da lei sucessória de nacionalidade do de cujus ou, ao contrário, no momento de seu decesso.

Assim, o Código de Processo Civil brasileiro retrata a sua soberania, aplicando sua legislação dentro território nacional, exceto em caso de mitigação prevista em lei. Neste caso, chama-se de territorialidade mitigada, a exemplo do Decreto-Lei n.º 4.657/42, que dispõe sobre a Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, alterada pela Lei Federal n. 12.376/2010.

O citado art. 10 do Decreto-Lei prevê que, em caso de morte ou por ausência, a sucessão obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer seja a natureza ou situação dos bens, bem como, “a sucessão de bens de estrangeiros, situados no País, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus”.

Aliás, o prefalado art. 10 do Decreto-Lei tornou-se uma garantia fundamental do indivíduo, nos termos do inciso XXXI do art. 5º, da Constituição Federal de 1988, a saber: “a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus”.

Em resumo, o Decreto-Lei determina que, em caso de sucessão mortis causa de estrangeiro com imóveis no Brasil, aplica-se, em regra, a legislação brasileira em benefício de cônjuge ou de filhos brasileiros, exceto se a lei sucessória estrangeira for mais favorável a eles.

Note-se que, embora a norma brasileira não especifique o tipo de sucessão causa mortis, é de sua tradição a sucessão ab intestato ou testamentária, pois havia regulamentação desde a Lei de Introdução ao Código Civil de 1916 (revogado pelo Código Civil de 2002) até o Decreto-Lei n.º 4.657/42 (Lei de Introdução às normas do direito brasileiro), permitindo a aplicação, no território brasileiro, de legislação sucessória do defunto estrangeiro relativo aos seus bens imóveis situados no Brasil.

Ademais, as referidas normas (Decreto-Lei n.º 4.657/42 e Constituição Federal de 1988) tratam de lei sucessória causa mortis, e não de testamento privado, cujas normas estão no Código Civil brasileiro e no francês. Entretanto, se o pressuposto normativo é favorecer ao cônjuge e aos seus filhos brasileiros sem prejudicar a vontade do defunto, é possível a incidência de lei estrangeira no território brasileiro, para confirmação de testamento ológrafo estrangeiro, referente a imóveis situados no Brasil.

No caso, o art. 970 do Código Civil francês atribui mais força jurídica à vontade do testador privado brasileiro, pelos seguintes motivos: i) o testamento ológrafo francês não precisa de testemunhas para confirmar sua validade, ao contrário do testamento privado brasileiro, nos termos do art. 1.878 do Código Civil brasileiro de 2002; e ii) a validade da cédula privada francesa depende da maneira de escrevê-la, ou seja, escrita inteiramente à próprio punho.

Além disso, sob o viés da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça brasileiro, configura-se o testamento privado francês um vício meramente formal no território brasileiro, por ausência de testemunhas, passível de validação por um juiz brasileiro.

6) Considerando a possibilidade de confirmar o testamento privado francês no território brasileiro, também será possível afastar alguma exigência da Lei de Registros Públicos brasileira (Lei n. 6.015/73)?

É importante ressaltar que, embora possível a confirmação de testamento privado francês por um juiz brasileiro, serão mantidas as exigências da Lei de Registros Públicos (Lei Federal n. 6.015/73). Por exemplo, a referida cédula testamentária deverá conter os requisitos do art. 176, incisos II e III, da Lei Federal n.º 6.015/73 (Lei de Registros Públicos brasileira), referente ao fólio real (matrícula) e ao registro imobiliário, ou seja, deverá constar o nome, nacionalidade, estado civil e endereço no testamento.

Aliás, até mesmo na Europa, não se afasta as exigências do direito imobiliário, razão pela qual é importante citar o considerando 18 do Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, ao dizer que “os requisitos relativos à inscrição num registo de direitos imóveis ou de propriedade pessoal deverão ser excluídos do âmbito de aplicação do presente Regulamento”.

CONCLUSÃO

Portanto, o testamento privado francês poderá ser confirmado por um juiz brasileiro, ainda que, sob uma releitura do Código Civil de 2002 pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça brasileiro, aquele testamento contenha vício meramente formal, passível de registro no cartório de imóveis brasileiro.

*Lourival da Silva Ramos Júnior - Titular da Serventia Extrajudicial de Sucupira do Riachão, Estado do Maranhão, Brasil.

Texto foi publicado no site Les Experts Du Patrimoine - Village Notaires & Patrimoine: https://www.village-notaires-patrimoine.com/divergence-formelle-sur-un-testament-prive-une-proposition-de-conciliation


[1] Traduação pela equipe UFRGS de Tradução das Convenções de Haia, coordenada pela Profª. Dra. Claudia Lima Marques e Prof. Dr. Fabio Morosini. Disponível no site: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=40


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