ARTIGO – CARTÓRIOS NA ERA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: ENTRE INOVAÇÃO E TRADIÇÃO – ANA LAURA MARCHI CUETO
Paula Brito - 04/06/2024
Atualmente, discutir Inteligência Artificial tornou-se um grande hype. No entanto, este assunto já é pauta nas conversas do mundo dos cartórios há algum tempo, datando de pelo menos 6 anos atrás, remontando ao Congresso de Notários e Registradores de 2018. Naquele evento, IA e blockchain foram temas centrais, com debates intensos sobre o papel transformador que poderiam exercer nos cartórios. Foram aquelas palestras que me fizeram começar a estudar o tema e aplicar algumas soluções dentro dos cartórios em que passei e nos produtos que neles desenvolvi.
De fato, a IA tem o potencial de desbloquear várias barreiras operacionais, especialmente aquelas tarefas que demandam análises e ações massivas. Essa capacidade de automatização é inquestionável e traz consigo um enorme potencial para eficiência e precisão. Contudo, é fundamental reconhecer uma realidade: existe um desafio de experiência que impõe a necessidade de manutenção de alguns processos burocráticos tal como são.
Como jurista, penso que ao adentrarmos o território da segurança jurídica e do registro público, não estamos apenas lidando com a burocracia por si só, mas com a garantia de direitos fundamentais. Estamos falando de procedimentos enraizados na história do país, que protegem direitos essenciais ao cidadão.
Os documentos extrajudiciais, tais como certidões, escrituras e outros instrumentos públicos, requerem uma análise meticulosa e profunda. Não é uma questão de avaliar informações isoladas, mas sim de compreender um contexto amplo e suas nuances. Isso implica que, embora a IA possa otimizar certos processos, proporcionando uma execução mais rápida e menos suscetível a erros humanos, há aspectos que demandam a intervenção humana, principalmente aqueles relacionados à interpretação e à aplicação de nuances legais.
Nesse sentido, a adoção da IA nos cartórios enfrenta questões de ordem ética e de privacidade. Como garantir a segurança dos dados sensíveis manipulados por estas entidades? Como assegurar que o uso da IA respeitará os limites legais e éticos? São questões que requerem um debate amplo e criterioso, envolvendo especialistas em tecnologia, direito e ética.
Como profissional de produtos de dados, afirmo que esse cenário não quer dizer que devemos nos abster de inovar e buscar formas de tornar os processos extrajudiciais mais ágeis e eficientes. Na verdade, é possível pensar em uma esteira de serviços mais fluida, que integre tecnologias avançadas de forma a otimizar as operações sem comprometer a integridade dos processos jurídicos essenciais. A chave para essa inovação reside no desenvolvimento de soluções que respeitem e valorizem os fundamentos jurídicos e éticos que norteiam os serviços notariais e de registro.
É comum ouvirmos a crítica de que “nada no Brasil funciona”, no entanto, os cartórios representam uma das poucas instituições que, de fato, desempenham um papel eficaz e indispensável na estrutura social e econômica do país. Eles não apenas resguardam direitos, como também executam um trabalho crucial na manutenção da ordem legal e na garantia da segurança jurídica. Logo, os cartórios devem ser vistos como aliados no processo de inovação, e não como obstáculos a serem superados.
Para que a inovação nos cartórios seja bem-sucedida e traga benefícios reais para a sociedade, é essencial adotar uma perspectiva de experiência de ponta a ponta. Isso significa considerar as necessidades e expectativas não apenas dos usuários diretos dos serviços extrajudiciais, como cidadãos e empresas, mas também levar em conta as operações internas dos próprios cartórios. Ao entender profundamente os desafios e limitações enfrentados por eles, é possível desenvolver soluções tecnológicas que aprimorem a eficiência operacional sem sacrificar a precisão, a segurança e a confiabilidade dos serviços prestados.
Isso posto, portanto, o caminho para a inovação nos cartórios exige um equilíbrio cuidadoso entre a adoção de novas tecnologias e a preservação dos princípios jurídicos que sustentam seu trabalho. Por meio de uma abordagem colaborativa e de um compromisso com a excelência e a integridade, podemos transformar os serviços judiciais e extrajudiciais, tornando-os mais acessíveis e eficientes, ao mesmo tempo em que mantemos seu papel fundamental na estrutura jurídica e social do país.
*Ana Laura Marchi Cueto é jurista e Gerente de Produtos Digitais, especialista em Inteligência Artificial, Ciência de Dados, Experiência do Usuário, Marketing e Direito Notarial e Registral. É fundadora da Jurintech, onde presta consultoria em Gestão e Inovação para Cartórios Extrajudiciais.
Fonte: Blog do DG