ARTIGO – RECONHEÇO E NÃO DOU FÉ – ANGELO VOLPI NETO
Paula Brito - 30/01/2024
Na semana passada, duas matérias na imprensa provocaram reflexões sobre a atividade notarial. A primeira delas[1] trata do fato de que o MPF quer que o Serasa seja multado pelo vazamento e comercialização de dados de cidadão. No final do ano passado já tinha me chamado atenção a propaganda do órgão de proteção ao crédito em que “autenticava” a identidade do Papai Noel. No texto, explicava as “capacidades” que usa como instrumento, entre elas a que permite conectar o rosto da pessoa aos registros oficiais que confirmam sua existência e autenticidade. Fiquei pensando: que registros oficiais seriam esses? O Serasa propaga ainda que possui um banco de dados com mais de 150 milhões de dispositivos mapeados no país.
A segunda notícia[2] dá conta de que supostamente o CNJ estaria investigando convênio com cartórios (ARPEN), Dataprev e uma empresa privada após denúncia de uma sociedade sem fins lucrativos intitulada “Instituto Internacional de Identificação”[3]. O foco principal da investigação é a oferta de serviços de identificação de pessoas físicas. Há algo mais a ser explicado.
A propósito, na ânsia de lucrar as empresas certificadoras estão levando o negócio a total insegurança, sendo só uma questão de tempo para os problemas se avolumarem. Nesse afã, foram criados três tipos de assinaturas: as “simples”, nas quais a checagem da identidade é feita pelo IP (Internet Protocol) do dispositivo ou da rede de acesso e pela localização geográfica. As “avançadas”, sob identificação remota de biometria e as “qualificadas”, sob identificação de autoridades certificadoras. E além disso, estão permitindo o uso de suas assinaturas na forma de assinaturas “destacadas”, ou seja, são “coladas” no documento. Os norte-americanos, de onde vem a inspiração legal e negocial, as chamam de detached,que seria algo como “desatachadas” e que, portanto, não vinculam o texto à assinatura. Inventaram a assinatura em branco digital!
A identificação de pessoas no mundo digital ainda é problema a ser resolvido. Fraudes e golpes feitos por transferências bancárias para contas de laranjas aterrorizam a todos. Ninguém fala sobre isso, mas essa é a principal origem do problema, ou seja, nosso poderoso e autoproclamado “moderno” sistema bancário não consegue resolver a identificação de seus correntistas. O dinheiro desviado vai para quem, efetivamente? Pergunta para o Noel.
Conforme vemos em nosso cotidiano e nas notícias acima referidas, perdura no ambiente digital a necessidade de reconhecimento e autenticação de pessoas. Diante da universalização dos relacionamentos remotos e das inúmeras possibilidades de falsificação de dados, documentos e imagens de pessoas, a necessidade de identificação e autenticação tornou-se o Santo Graal. O Brasil, segundo relatoria da VISA com base em 2,7 bilhões de transações globais, ficou em 2º lugar no mundo no índice de ocorrência de fraudes, atrás somente da China.
A Lei nº 8.935/94 em seu art. 7º, inciso IV, prevê expressamente como competência exclusiva o reconhecimento de firmas pelos tabeliães de notas. O reconhecimento de “firmas” remonta às Ordenações Afonsinas, nas quais dizia-se do sinete próprio para selar, ou para autenticar papéis. Dizia-se, assim: “Do instrumento em que se continha a assinatura de alguém[4].” Na época em que a prevalência dos documentos eram os cartáceos e os negócios eram entabulados presencialmente, o reconhecimento da identidade das pessoas e das assinaturas manuscritas foi outorgado aos notários, prestigiando e mantendo uma tradição milenar originária da atuação de escribas.
Com o surgimento da informática e seus documentos digitais no início dos anos noventa, a UINL (União Internacional do Notariado Latino) foi convidada a participar do debate sobre a necessidade de identificação de pessoas por uma terceira parte imparcial no Intercâmbio Internacional de Dados eletrônicos. Representada pelo notário italiano Mario Miccoli, na qualidade de presidente da Comissão de informática da UINL, os debates ocorreram no seio da ABA (American Bar Association) e deram início à atuação notarial neste ambiente, criando inclusive a marca Cybernotary[5]. Desde então construiu-se na doutrina e prática da atuação notarial seu papel originário de autenticador de documentos, fatos, negócios e pessoas no universo digital.
Valendo-se da dialética legislativa e jurisprudencial sobre a prova no direito brasileiro, sorrateiramente a mão invisível do mercado foi criando e implementando normas, neologismos (não repúdio, pleno valor jurídico etc.) e regulamentos notadamente no âmbito da ICP Brasil (aquele do certificado 1234). O próprio Código de Processo Civil recebeu em seu art. 411 o inciso II, que equipara “outro meio legal de certificação, inclusive eletrônico” ao reconhecimento de firma pelo tabelião. Bom para ganhar dinheiro e deixar o problema para ser resolvido em juízo, ou quem sabe vendendo um segurozinho. Todo mundo reconhece e autentica, mas ninguém “dá fé”!
Vemos agora que não somente empresas, mas também registradores civis se arvoram para prestar serviços de autenticação e reconhecimento de pessoas enquanto dorme o notariado do país. Este, sendo detentor de um cadastro monumental de pessoas e tendo como patrimônio uma longa e especializada qualificação para identificar e autenticar capacidade intelectual e voluntariedade, simplesmente ignora sua potencialidade.
Dormientibus Non Socurrit Jus… e nem o mercado, acrescento!
*Angelo Volpi Neto – Notário
3-https://interid.org/servicos/#quemsomos
4-Vocabulário Prático de Tecnologia Jurídica e de Brocardos Latinos. Neves, Iêdo Batista – APM Editora 1987. 5 Comércio Eletrônico Direito e Segurança. Volpi Neto, Angelo. Juruá 2001.
Fonte: Blog do DG