CRÉDITO, INADIMPLÊNCIA, GARANTIAS NO MERCADO DE CRÉDITO NO BRASIL E UMA BOA OPORTUNIDADE
Paula Brito - 07/05/2021
A história nos mostra que o crédito é uma das alavancas mais importantes para o desenvolvimento econômico e social dos países. Podemos afirmar com segurança que não existe caso de país desenvolvido, com nível elevado de renda per-capita, que não conte com um sistema de crédito também desenvolvido, tanto em termos de penetração, normalmente mensurada pela relação crédito/PIB, quanto na quantidade e na qualidade dos produtos ofertados. Nos Estados Unidos, a relação crédito/PIB é de 191,2%; na União Europeia, em média, de 86,6%; e na Inglaterra de 133,6%. Na outra ponta, nos países de baixa renda, esta relação é de apenas 13,1% do PIB. Nesse espectro, o Brasil se encontra numa posição intermediária, com uma relação crédito/PIB de 54,0% (fev/21), ainda razoavelmente abaixo dos mercados mais desenvolvidos, mas já bem acima dos níveis registrados nos países mais pobres.
São diversas as razões que ajudam a explicar esta relação tão clara entre o crédito e o desenvolvimento econômico e social dos países. A primeira delas é porque o crédito permite uma ampliação do consumo e do investimento, com impactos positivos sobre o crescimento econômico. O crédito torna possível a ampliação do consumo e do investimento, facultando o uso de recursos (poupança) que de outro modo permaneceriam ociosos na economia. Mas, além da dimensão do crescimento, o crédito também contribui para o bem-estar de uma sociedade, já que permite que os tomadores de crédito ampliem o seu consumo no presente com base em sua renda futura e que os poupadores desfrutem, no futuro, do capital que acumularam durante a sua fase de vida mais produtiva.
A experiência dos países mostra que o crédito se expande fortemente quando temos as seguintes condições: i) estabilidade macroeconômica, em especial com inflação baixa e estável, que favoreça o cálculo econômico e o planejamento de longo prazo (previsibilidade); e ii) um ambiente microeconômico favorável, que contribua para uma redução da inadimplência e das perdas com as operações de crédito. Para que isto aconteça, é fundamental que os agentes econômicos, em especial os ofertantes de crédito, contem com: a) a existência de informações, com qualidade e quantidade, sobre os potenciais tomadores de crédito, empresas e famílias; e b) em especial, a possibilidade de utilização de garantias para mitigar o risco das operações de crédito, vale dizer, garantias que tenham características importantes como liquidez e baixo custo de recuperação – aqui está o principal segredo do mercado de crédito.
Neste artigo centraremos nossa atenção no item ii acima, analisando a questão da inadimplência no âmbito do mercado brasileiro, sua relevância para o custo das operações de crédito, seus principais componentes e o que pode ser feito para reduzir este custo e, assim, permitir uma ampliação perene, segura e sustentável do crédito.
Vamos começar situando a relevância da inadimplência na composição do chamado spread bancário no Brasil. Como sabemos, o spread bancário corresponde à diferença entre as taxas que as instituições financeiras cobram pelos seus empréstimos e as taxas que pagam pela captação de recursos (funding) para as suas operações. Em dezembro de 2020, na média das operações de crédito, o spread bancário no Brasil era de 14,48 pp, resultado da diferença entre uma taxa média dos empréstimos de 18,43% aa e uma taxa média de captação de 3,95% aa.
Embora algumas pessoas menos familiarizadas com o mercado financeiro confundam o spread bancário com o lucro dos bancos, é importante destacar que este conceito não está correto e um não se confunde com o outro. Na realidade, o spread bancário equivale ao somatório dos custos da intermediação financeira e mais a margem de lucro das instituições financeiras, ou seja, o lucro é uma parte, a menor aliás, do spread.
O quadro abaixo demonstra a composição do spread das operações de crédito no Brasil, de acordo com cálculos elaborados pelo Banco Central e que constam do Relatório de Economia Bancária de 2019, de referida autarquia.
Em primeiro lugar, vale destacar que os dados mostram que cerca de 81,8% do spread bancário, ou seja, aproximadamente 4/5, estão relacionados aos chamados custos de intermediação financeira e apenas a menor parte, de 18,2%, corresponde ao lucro das instituições financeiras. Utilizando os dados de dezembro de 2020, por exemplo, isto significa que de, um spread total de 14,48 pp ao ano, a margem ou o lucro das instituições financeiras com as operações de crédito foi de 2,63% ao ano.
Aqui não entraremos em detalhes dos itens de tributos e despesas administrativas, também muito relevantes, tanto mais que o setor bancário brasileiro é premiado com uma das maiores cunhas fiscais do mundo. Vamos nos ater à inadimplência, de longe o maior componente de custo na composição do spread bancário no Brasil. De cada R$ 100 de spread, nada menos do que R$ 34,70 são destinados para cobrir os custos com a inadimplência nas operações de crédito.
Mas, qual a razão de termos custos com a inadimplência tão elevados em nosso País, bem acima dos registrados nos países desenvolvidos e superior à maioria dos emergentes comparáveis ao Brasil? Em nossa avaliação, temos dois conjuntos de fatores que ajudam a entender esta questão. O primeiro é que os índices de inadimplência (a perda decorrente do não pagamento das operações de crédito) ainda são elevados em nosso País, mesmo com a melhora registrada nos últimos anos. O segundo, e talvez até mais importante nos dias de hoje, é a baixa efetividade das garantias, que por aqui acabam funcionando pouco como fator mitigador do risco de crédito, que é um elemento de extrema relevância em outras jurisdições.
O quadro abaixo mostra que os índices de inadimplência no Brasil vêm recuando ao longo do tempo, mas ainda são elevados, em especial em alguns produtos no mercado de pessoas físicas e no segmento das micro e pequenas empresas.
Evolução da inadimplência da carteira com recursos livres – PJ (Total), PF (Total) e Crédito Pessoal não Consignado (PF)
Em nossa avaliação, estes índices, ainda elevados, têm relação com a baixa qualidade das informações à disposição para precificação do risco das operações de crédito e, provavelmente, com uma postura mais inclusiva do sistema bancário brasileiro, disposto a estender o crédito para setores com maior risco e, portanto, com probabilidade maior de inadimplência.
Contudo, aqui devemos reconhecer que progredimos muito nos últimos anos e estamos no caminho correto. Há, no Bacen, o Sistema de Informações de Crédito (SCR), que gera hoje em dia um notável conjunto de informações de crédito sobre os clientes bancários, com a incorporação de novos produtos e com maior tempestividade. Desde 2019, o cadastro positivo entrou em nova etapa com a adoção do sistema de “opt-out” (todos os clientes são incluídos, a não ser que peçam para sair), o que elevará, em muito, o seu potencial de avaliação do risco de crédito dos clientes do setor bancário. Por fim, está em curso uma verdadeira revolução na área de modelagem e da utilização de informações adicionais que vem permitindo grandes avanços na correta precificação dos riscos nas operações de crédito.
Em resumo, portanto, mesmo que nossos números de inadimplência ainda sejam relativamente elevados, em especial em algumas linhas de maior risco, a tendência é de declínio e de aproximação com os níveis registrados nos mercados mais desenvolvidos.
Por outro lado, na questão das garantias, infelizmente, ainda estamos muito atrasados e com um longo caminho a percorrer para torná-las mais efetivas em nossos mercados. Como sabemos, as garantias são fundamentais para mitigar o risco das operações de crédito. Em especial, no caso daqueles tomadores com um risco de crédito mais elevado, a possibilidade de aportar garantias é fundamental para mitigar este risco e assim permitir que este cliente tenha acesso a uma taxa de juros mais baixa na sua operação. Assim como clientes com melhor avaliação de risco (nota mais alta no cadastro positivo, por exemplo) têm acesso a taxas de juros mais baixas, a presença de boas garantias funciona na mesma direção, inclusive compensando a eventual pior classificação de risco do tomador.
É importante destacar que, para serem eficientes, as garantias devem possuir algumas características importantes. Primeiro, devem ser ativos de qualidade e que tenham o seu valor preservado ao longo da operação. Segundo, que sejam de fácil execução, o que normalmente depende da sua liquidez, mas também de um bom funcionamento do ambiente de negócios, em especial da compreensão do Poder Judiciário. Por fim, é importante que a eventual execução das garantias não tenha custos elevados e que seja relativamente rápida. Neste contexto, sistemas que centralizem informações sobre garantias, que tenham transparência e confiabilidade ajudam bastante na construção de um bom sistema de garantias.
Entretanto, no Brasil, infelizmente, ainda estamos muito distantes da segurança propiciada pelos sistemas dos países desenvolvidos e mesmo de alguns emergentes. O quadro abaixo traz uma comparação sobre a capacidade de recuperação de garantias para uma mostra relevante de países.
Como se observa, o Brasil ostenta uma vergonhosa posição de lanterna, com uma recuperação de apenas 0,146 para cada um dólar dado em garantia nos casos em que as empresas entram em processo de recuperação judicial. Para efeito de comparação, na Inglaterra, o percentual de recuperação chega a impressionantes 0,853 cents. Mesmo considerando apenas os países emergentes do estudo, a mediana da amostra seria de 0,416 cents por dólar dado em garantia, cerca de três vezes o valor no Brasil.
Nesta mesma pesquisa, os números mostram que, além de recuperar pouco, no Brasil este processo de retomada costuma ser demorado (média de quatro anos) e com custo relativamente elevado (o processo de retomada costuma consumir cerca de 12% do valor a ser recuperado).
Temos aqui, portanto, uma combinação perversa para o crédito: somos um dos países que menos recupera garantias, que mais tempo demora e mais custos tem para essa recuperação, ou seja, temos um grande desafio, mas também uma grande oportunidade. A melhoria na efetividade das garantias, tanto no percentual de retomada, como na redução do seu custo e tempo de recuperação, será fundamental para propiciar uma queda nos custos de inadimplência e em consequência do spread bancário. Precisamos enfrentar isso.
Nesse cenário, a Central de Protestos (CENPROT) é um excelente exemplo de contribuição. Com segurança, eficácia, celeridade e padronização, a CENPROT permite a centralização eletrônica dos protestos, facilitando aos usuários o acesso a informações e serviços, dentre eles: consultas sobre a existência de protesto em desfavor de pessoas físicas ou jurídicas; obtenção de instrumentos eletrônicos de protesto; emissão de declarações de anuência para o cancelamento do protesto; e realização de pedidos de cancelamento de protesto. Em suma, torna o fluxo e o procedimento do protesto e respectiva “baixa” ágil e linear, em um modelo moderno alinhado com os grandes avanços tecnológicos dos dias atuais.
Tudo isso possibilita a redução do prazo de cobrança e, por consequência, da efetivação da garantia e do adimplemento.
Esperamos que, assim como a iniciativa da CENPROT, tenhamos outras que aprimorem a recuperação do crédito e possibilitem a evolução econômica brasileira.
Isto posto, tem-se que a evolução contínua do processo de recuperação de crédito é um ponto fundamental para a redução do custo dos empréstimos, o que propiciará maior volume de concessão e, por principal, o desenvolvimento social e de bem estar dos cidadãos brasileiros.
Notas_____________________________
1. Dados do Banco Mundial referentes a 2019, com exceção da média dos países de baixa renda, cujo dado é de 2018.
2. Detalhes podem ser obtidos no Relatório de Economia Bancária do Bacen (https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/relatorioeconomiabancaria/REB_2019.pdf) ou no livro “Como fazer os juros serem mais baixos no Brasil”, da FEBRABAN (https://jurosmaisbaixosnobrasil.com.br/febraban.pdf).
3. Fonte primária dos dados: Banco Mundial
* Isaac Sidney Menezes Ferreira - Presidente da Febraban