NOTARIALIDADE DIGITAL: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO - ANDREY GUIMARÃES DUARTE


Paula Brito - 02/10/2025

A transposição da fé pública para o ambiente eletrônico

A transformação digital representa um marco civilizatório, comparável à invenção da imprensa ou à revolução industrial, pelo impacto que exerce sobre as formas de comunicação, de produção e de organização social. O Direito, como sistema de ordenação da vida coletiva, não pode ignorar os riscos que emergem dessa nova realidade. Se por um lado a tecnologia democratizou o acesso à informação e ampliou exponencialmente a capacidade de realização de negócios jurídicos, por outro lado trouxe consigo um efeito colateral que se manifesta na amplificação dos riscos e na propagação quase incontrolável dos danos.

O mundo digital não conhece fronteiras físicas, tampouco limites de tempo e espaço. Uma fraude, uma manipulação de identidade ou a circulação de uma informação falsa não permanecem circunscritas a um grupo delimitado de pessoas, mas rapidamente se expandem, alcançando milhões em questão de segundos. É o que se pode denominar de lógica da exponencialidade dos danos: aquilo que em contexto analógico seria episódico e contido, no ambiente virtual se multiplica em progressão geométrica, gerando consequências assimétricas entre a causa e o efeito.

É nesse ambiente de riscos multiplicados que surge a pertinência de se falar em notarialidade digital. O conceito designa a transposição dos princípios estruturantes da atividade notarial, fé pública, autenticidade, formalização e prevenção de litígios, para o ciberespaço. Se trata de imaginar a atividade dos cartórios de notas adaptados para atuar em plataformas eletrônicas, compreendendo que os valores essenciais que sempre fundamentaram a função notarial precisam encontrar meios de expressão também no mundo digital. O notário, historicamente, desempenhou o papel de garantidor da confiança, assegurando que os atos jurídicos praticados perante si fossem dotados de autenticidade e eficácia, prevenindo conflitos futuros. O mesmo raciocínio deve orientar a construção de ferramentas digitais: em vez de apenas digitalizar documentos ou assinar arquivos eletronicamente, é necessário conferir a esses atos um regime de segurança institucionalizado, capaz de gerar a mesma confiança social que sempre caracterizou a fé pública.

No Brasil, esse processo se concretizou de forma pioneira com o provimento 100 do CNJ, editado em 2020, que instituiu a prática de atos notariais eletrônicos e criou a plataforma e-Notariado. Esse marco normativo disciplinou a emissão de certificados digitais notarizados, a realização de videoconferências para a coleta de manifestações de vontade e a criação da matrícula notarial eletrônica, assegurando que cada ato praticado digitalmente estivesse vinculado a um notário investido de fé pública. Posteriormente, o provimento 149 de 2023 consolidou a matéria, integrando-a ao quadro geral de normas aplicáveis ao serviço extrajudicial. A disciplina brasileira acompanha tendência internacional, como se vê na União Europeia, com o Regulamento eIDAS de 2014 e sua reforma em 2024, conhecida como eIDAS 2.0, que estabeleceu padrões comuns para identificação digital, assinaturas eletrônicas qualificadas e carteiras digitais interoperáveis. Em todos esses exemplos, nota-se o esforço por criar sistemas de confiança que deem ao ambiente virtual a mesma segurança que a sociedade sempre exigiu das relações presenciais.

Os fundamentos da notarialidade digital podem ser resumidos em quatro grandes eixos: a autenticação eletrônica da identidade, que impede a usurpação da vontade alheia; a instrumentalização dos atos notariais em meio eletrônico, garantindo sua validade jurídica; a conservação digital com fé pública, assegurando a perenidade e a integridade dos documentos; e a função preventiva aplicada ao espaço virtual, reduzindo a litigiosidade e conferindo certeza às relações jurídicas digitais. Esses eixos demonstram que a notarialidade digital não é uma abstração, mas um paradigma em construção, com aplicação concreta na vida social.

A relevância desse modelo torna-se mais evidente quando se analisam episódios de vulnerabilidade institucional. A fraude recente no Instituto Nacional do Seguro Social, que vitimou milhões de aposentados e pensionistas entre 2019 e 2024, ilustra de forma dramática a ausência de protocolos adequados de consentimento digital. Nesse caso, entidades associativas lançaram descontos indevidos na folha previdenciária sem que houvesse anuência expressa e autenticada dos beneficiários. A operação se sustentou justamente porque o sistema permitia o registro automático de contribuições sem validação segura da manifestação de vontade. O resultado foi um prejuízo estimado em bilhões de reais, que só veio à tona quando o volume de reclamações tornou insustentável a fraude. Se houvesse mecanismos equivalentes à formalização notarial, registros eletrônicos de consentimento, certificados digitais qualificados, autenticação por fé pública, a fraude teria sido significativamente dificultada ou mesmo inviabilizada.

É certo que a proposta de notarialidade digital pode receber críticas. Alguns podem argumentar que já existem tecnologias capazes de assegurar segurança no ambiente eletrônico, como blockchain, criptografia de ponta e autenticação multifatorial. Outros podem sustentar que a formalização notarial encarece as transações e compromete a agilidade digital. Há ainda quem veja nesse movimento uma tentativa de corporativismo, ao ampliar a esfera de atuação dos notários. Contudo, essas críticas não resistem a uma análise mais detida. A tecnologia, por si só, não gera confiança social: a confiança decorre de instituições legitimadas, capazes de vincular a tecnologia a uma estrutura normativa e de responsabilidade. Quanto ao custo, a Análise Econômica do Direito demonstra que os gastos com prevenção são muito menores do que os custos sociais decorrentes de litígios e fraudes em massa. E no que tange ao suposto corporativismo, o que se busca não é ampliar artificialmente a esfera notarial, mas aplicar sua lógica secular de prevenção e fé pública ao espaço digital, em benefício da sociedade como um todo.

A notarialidade digital, portanto, deve ser entendida como continuidade e atualização da função notarial no século XXI. Sua missão permanece a mesma: preservar a confiança e assegurar a segurança das relações jurídicas. O que se altera é o suporte, que deixa de ser apenas o papel e o contato físico para incorporar a rede, a certificação digital e os sistemas eletrônicos. Essa transposição não significa ruptura, mas evolução. Ao conferir fé pública a documentos eletrônicos, ao autenticar identidades digitais e ao registrar a vontade das partes em meio eletrônico, o notário se adapta ao tempo presente, garantindo que a inovação tecnológica caminhe de mãos dadas com a estabilidade institucional.

Em um mundo em que os danos se propagam em velocidade e escala exponenciais, não basta contar com soluções técnicas fragmentadas. É necessário um sistema de confiança que seja reconhecido social e juridicamente como dotado de legitimidade, capaz de assegurar que os atos praticados digitalmente tenham a mesma eficácia que sempre tiveram os atos presenciais. A notarialidade digital é justamente essa resposta: uma forma de transpor ao ambiente eletrônico os valores da fé pública, da prevenção e da segurança jurídica, garantindo que o futuro digital não seja apenas veloz, mas também confiável.

Fonte: Migalhas


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