REFORMA DO CÓDIGO CIVIL E OS IMPACTOS PRÁTICOS NO DIREITO NOTARIAL E REGISTRAL


Paula Brito - 24/10/2025

1. Introdução

O CC/02 caminha para sua primeira grande revisão estrutural. O PL 4/25, de autoria do Senado Federal, nasceu do trabalho da Comissão de Juristas instituída pelo presidente Rodrigo Pacheco e pretende atualizar institutos que já se mostram anacrônicos frente às transformações sociais, econômicas e tecnológicas das últimas duas décadas.

O movimento não é apenas de modernização terminológica: busca-se redesenhar o equilíbrio entre autonomia privada, tutela estatal e desjudicialização de atos da vida civil, com impactos diretos no sistema notarial e registral. Contratos, mandatos, curatelas, testamentos e registros de imóveis estão no epicentro dessa transformação.

2. Linhas centrais da reforma

Entre os eixos confirmados no PL 4/25, destacam-se:

- Capacidade civil: Restringe a incapacidade absoluta a menores de 16 anos e àqueles que por nenhum meio possam exprimir vontade. A deficiência, por si só, não afeta a capacidade.
- Regimes de bens: Permite alteração extrajudicial do regime no tabelionato de notas e admite cláusulas condicionais, como as chamadas sunset clauses, que modificam o regime automaticamente após certo tempo.
- Diretiva antecipada de curatela: Cria o instituto, possibilitando a designação prévia de curador por escritura pública, em caso de futura incapacidade.
- Contratos e sucessões: Abre espaço para pactos com disposições sucessórias e renúncias condicionadas à herança futura.
- Testamentos: Discute-se a flexibilização das formalidades do testamento particular, sem supressão definitiva das exigências de testemunhas, mas com tendência de redução da burocracia.

3. Contratos e mandatos

A previsão de pactos sucessórios e renúncias condicionadas exigirá que os tabelionatos de notas desenvolvam novos modelos de escrituras, com cautela redobrada na formulação de cláusulas de eficácia diferida.

Nos mandatos, a ampliação da capacidade relativa e a facilitação da emancipação impõem ao notário uma função mais ativa de qualificação subjetiva: aferir se o outorgante dispõe de capacidade suficiente para os poderes conferidos. O risco de nulidade por vício de capacidade exigirá escrituras mais bem fundamentadas.

4. Tutela, curatela e diretiva antecipada

A Diretiva Antecipada de Curatela é inovação de relevo. Permitirá que qualquer pessoa, em plena capacidade, indique previamente seu futuro curador. Isso desloca para o notário uma atribuição hoje quase exclusiva do Judiciário: organizar a sucessão da curatela.

O registro civil terá de criar mecanismos de averbação para dar publicidade a essas diretivas, garantindo que sejam oponíveis a terceiros. A proposta dialoga com a jurisprudência do STJ, que já vem restringindo hipóteses de incapacidade absoluta e exigindo proporcionalidade na curatela (REsp 1.927.423/SP).

5. Testamentos e sucessões

O PL sinaliza maior harmonia entre os Livros de Família e Sucessões, evitando conflitos normativos sobre regimes de bens e sucessão legítima.

Dois reflexos práticos para o notariado:

- Ampliação da autonomia sucessória, com pactos e renúncias em vida exigindo escritura pública.
- Revisão das formalidades do testamento particular, tema em debate pela doutrina (Flávio Tartuce, entre outros). Ainda não há texto definitivo, mas a tendência é reduzir entraves formais sem comprometer a segurança.
A jurisprudência reforça esse caminho: a 4ª turma do STJ manteve testamento cerrado de 2005, afirmando que a capacidade deve ser aferida no momento da lavratura (REsp 2.032.458/RS). Isso dá lastro à ideia de flexibilização formal.

6. Registro de imóveis

O impacto sobre o registro imobiliário é sensível:

- Alterações de regime de bens implicarão averbações automáticas, aumentando a carga de serviço.
- Pactos com cláusulas resolutivas ou condicionais obrigarão o registrador a lidar com títulos de eficácia futura ou suspensa, exigindo novos protocolos de qualificação.
- A jurisprudência do STJ (REsp 1.855.689/DF) reafirmou que a renúncia hereditária é irrevogável, indivisível e retroage à abertura da sucessão, alcançando bens descobertos posteriormente. Esse entendimento deverá orientar os registros sucessórios, especialmente quando houver bens ocultos ou supervenientes.

7. Desafios práticos

A reforma abre oportunidades, mas também cria gargalos:

- Capacitação técnica de notários e registradores para novos institutos.
- Uniformização nacional de procedimentos, sob coordenação do CNJ.
- Custo tecnológico para digitalizar e interoperar bases de dados.
- Risco de exclusão digital em regiões carentes, onde a população depende da via física.
O sistema notarial e registral terá de responder com eficiência e segurança, sob pena de abrir espaço para litigiosidade.

8. Conclusão

A reforma do CC não é apenas uma atualização de linguagem. É um reposicionamento do papel do notário e do registrador como agentes de segurança jurídica.

Ao deslocar competências do Judiciário para a via extrajudicial, o legislador reconhece a confiança social depositada na fé pública. Caberá aos cartórios absorver esse protagonismo sem comprometer a solidez que é sua marca histórica.

Mais que nunca, o futuro do Direito Notarial e Registral dependerá de um equilíbrio fino: inovar sem perder a segurança, ampliar a autonomia da vontade sem abrir brechas à fraude, e modernizar procedimentos sem excluir o cidadão comum.

Fonte: Migalhas 


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