REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA: O PAPEL DOS CARTÓRIOS NA CONCRETIZAÇÃO DO SONHO DA CASA PRÓPRIA
Paula Brito - 12/12/2025
Metade dos imóveis brasileiros ainda carece de documentação regular. Cidades inteiras cresceram em loteamentos informais, favelas ou assentamentos sem título de propriedade, realidade que atinge cerca de 5 milhões de domicílios urbanos em situação irregular. Nos últimos anos, uma mobilização nacional envolvendo governos, judiciário, prefeituras e Cartórios de Registro de Imóveis tem enfrentado esse desafio histórico. Leis inovadoras e mutirões de titulação estão agilizando a entrega de escrituras em massa, com os Cartórios exercendo um papel-chave para formalizar propriedades e assegurar direitos a quem espera há décadas por um documento.
Da lei do REURB aos mutirões nacionais de titulação
A mudança de paradigma ganhou força com o marco legal da regularização fundiária, a Lei nº 13.465/2017. Conhecida como lei do REURB (Regularização Fundiária Urbana), ela unificou e simplificou procedimentos para legitimar ocupações informais, permitindo que grande parte do processo fosse feito por via extrajudicial. Na prática, passou-se a dispensar longas ações judiciais de usucapião ou reintegração de posse nos casos de interesse social, substituindo-as por um rito administrativo em que prefeituras identificam núcleos urbanos informais e, em parceria com os Cartórios de imóveis, providenciam as matrículas e escrituras aos moradores. A Lei 13.465/2017 facilitou a legitimação de propriedades informais mediante procedimentos extrajudiciais nos registros de imóveis, em coordenação com municípios, beneficiando moradores de loteamentos irregulares.
Com isso, processos que antes podiam levar anos nos tribunais ganharam celeridade e escala inéditas. Por exemplo, enquanto uma ação judicial de usucapião tradicional podia se arrastar por 5 a 10 anos, o reconhecimento administrativo da usucapião em Cartório introduzido em 2015 e aprimorado por essa lei – permite obter o título em questão de meses. A desjudicialização abriu caminho para esforços concentrados de regularização: em todas as regiões do país surgiram projetos integrados entre poder público e Cartórios para titular bairros inteiros.
Um exemplo notável é a Semana Nacional de Regularização Fundiária “Solo Seguro”, coordenada pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Apenas na edição de 2025, essa força-tarefa entregou cerca de 116.796 títulos de propriedade a famílias de comunidades carentes nos 26 estados e no Distrito Federal. Estados populosos como São Paulo e Pará lideraram em volume – cada um com aproximadamente 20 mil títulos emitidos em poucos dias – seguidos por Paraná (~10 mil) e Piauí (~7,3 mil).
Cada matrícula entregue representa uma família antes à margem da legalidade que agora passa a existir no “mapa” formal da cidade, podendo dizer: “este lote é meu”. Trata-se de um avanço significativo diante do passivo habitacional brasileiro – estimado em mais de 5 milhões de domicílios irregulares – e evidencia a capacidade de mobilização do mecanismo extrajudicial. A juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, Liz Rezende, explica que com o título definitivo em mãos, “o ocupante se torna proprietário, trazendo segurança jurídica e permitindo o acesso a serviços básicos e a programas governamentais. Além disso, [a titulação] estimula a economia, organiza o espaço urbano e contribui para a preservação do meio ambiente”
Cartórios levam segurança jurídica, inclusão social e acesso a políticas públicas
A participação dos Cartórios de Registro de Imóveis é fundamental em cada etapa da regularização fundiária, garantindo que os novos títulos tenham plena validade legal e estejam livres de sobreposições ou fraudes. Do ponto de vista dos beneficiários, a presença do Cartório traz segurança jurídica, a certeza de que aquele pedaço de papel é um documento público registrado, inquestionável, que ninguém tomará. Para especialistas, essa segurança do título é o alicerce de outras conquistas: “permitir que famílias tenham o título legítimo de suas casas, que possam dizer com orgulho ‘este imóvel é meu’, muda vidas, dá dignidade e abre portas para crédito, herança, melhorias urbanas. É o notariado cumprindo sua função cidadã”, destaca Rogério Marques Sequeira Costa, registrador de imóveis no Rio de Janeiro.
De fato, uma vez registrada a propriedade, a família pode acessar financiamentos bancários (usando o imóvel como garantia ou para reformas), tem direito a deixar o bem em herança legalmente aos filhos e passa a ter um endereço formal reconhecido, o que facilita receber serviços públicos. “Com o título em mãos, as famílias passam a ter acesso a financiamento, podem investir no imóvel com segurança e até negociar legalmente a propriedade. A cidade também se beneficia”, reforça o desembargador Selso de Oliveira, coordenador do programa Lar Legal em Santa Catarina. Nesse estado, o Lar Legal, iniciativa pioneira do Tribunal de Justiça (TJSC) em parceria com Cartórios, já entregou cerca de 45 mil escrituras em 370 comunidades, ao longo de 26 anos. O sucesso catarinense inspirou projetos semelhantes em vários estados, sob nomes como Moradia Legal, Casa Legal ou Minha Casa Legal, quase sempre unindo Judiciário estadual, prefeituras e Cartórios numa grande força-tarefa local.
Em Uberaba (MG), por exemplo, a prefeitura lançou o programa “Minha Casa Legal” em 2018 com apoio do Ministério das Cidades, visando regularizar loteamentos inteiros. À época, estimava-se que 46% dos imóveis de Uberaba estavam irregulares, enquanto a média brasileira era de 50%, praticamente metade das moradias sem escritura. Iniciativas como essa quebram paradigmas locais e trazem resultados rápidos, simplificando processos que antes eram individualizados.
No Rio Grande do Sul, a recém-lançada ação MultiplicaRS Moradia, encabeçada pela ANOREG/RS em parceria com a Assembleia Legislativa, é outro exemplo: o projeto foca na regularização de núcleos urbanos informais, levando segurança jurídica e inclusão social a milhares de famílias gaúchas antes à margem da legalidade.
“A regularização fundiária foi elevada ao status de política pública em São Paulo. … Não é só a entrega de um documento para o morador, mas traz desenvolvimento urbano, segurança jurídica, dignidade para todas as famílias”, afirmou Marcelo Branco, secretário de Desenvolvimento Urbano do Estado de São Paulo, ao anunciar meta de 200 mil regularizações até 2026. Sob a gestão estadual atual, cerca de 90 mil títulos já foram entregues em apenas 16 meses, impulsionados pelo programa Cidade Legal e por convênios com Cartórios, e outros estados como Maranhão (13 mil títulos em dois anos), Pará (35 mil títulos desde 2019) e Roraima (15 mil títulos até 2024) igualmente celebram números recordes. Cada entrega coletiva de escrituras é marcada por cerimônias festivas e muita emoção – sinal de que a posse definitiva é, para essas famílias, um divisor de águas.
“O Lar Legal impactou decisivamente a minha comunidade… porque trouxe segurança, pacificação, movimentou a economia e melhorou a qualidade de vida”, relata Vladimir Borges Ribeiro, líder comunitário de Palhoça (SC), onde centenas de moradores receberam títulos graças ao programa. Em outra região da mesma cidade, o lançamento da regularização fundiária foi marcado por comemoração coletiva: “Hoje é um dia histórico. É um sonho de muitas décadas que se realiza, é a prova de que, com o empenho da comunidade em parceria com as instituições, podemos construir uma sociedade melhor e mais justa”, discursou emocionado João Domingos Pereira, ao ver seu loteamento finalmente reconhecido. Declarações como essas, de quem vivenciou a transformação, ilustram o poder social da regularização: não se trata apenas de papel, mas de pertencimento e cidadania conquistada.
Um dos motivos do êxito dessas iniciativas é justamente o caráter extrajudicial e desburocratizado que passou a prevalecer. Ao delegar aos Cartórios a atribuição de formalizar os títulos, papel antes exclusivo do Judiciário, as regularizações ganharam em agilidade. Procedimentos que consumiam anos de tramitação agora são resolvidos em semanas ou meses, graças à atuação direta de registradores e notários, sem abrir mão do rigor técnico. A transferência de atribuições começou com a Lei 11.441/2007 (inventários e divórcios em Cartório) e se consolidou no âmbito imobiliário com o REURB e com mecanismos como a usucapião extrajudicial. Essa desjudicialização traz benefícios mensuráveis: já poupou mais de R$ 9 bilhões em gastos do poder público, evitando processos e liberando juízes para casos mais complexos.
Ao mesmo tempo, leva a justiça a todos os cantos do país por meio da capilaridade dos Cartórios, são cerca de 13 mil serventias extrajudiciais espalhadas pelo território nacional, muitas vezes presentes em municípios onde o Judiciário não tem vara instalada. Essa proximidade facilita mutirões de campo, atendimentos em comunidades e a orientação personalizada dos moradores sobre documentos necessários, inscrição em programas etc., reduzindo barreiras de acesso. “Devemos repensar o Judiciário e deixar a cargo do juiz somente o que for necessário”, defendeu recentemente o juiz Márcio Evangelista, do TJDFT, apontando que a parceria com os Cartórios é um “caminho sem volta” para atender as demandas da sociedade com rapidez e eficiência.
Do papel à casa: escrituras levam dignidade e novas oportunidades
Por trás de números impressionantes e termos jurídicos, estão as histórias de famílias que, enfim, veem realizado o sonho de morar “no que é seu”. A entrega de uma escritura costuma representar um momento de virada na trajetória dessas pessoas, muitas vezes rompendo um ciclo geracional de informalidade. A aposentada Ana Maria, 75 anos, esperou 17 anos pelo título de posse de sua casa em São José (SC) e nunca perdeu a esperança. Quando finalmente recebeu a documentação, em junho de 2023, na porta de sua residência, não conteve a emoção: “Receber o título de propriedade na minha porta foi um momento de muita emoção. O prefeito nos deu não apenas um pedaço de papel, mas também respeito e dignidade. Agora, posso olhar para minha casa e sentir que realmente pertence a mim e à minha família”.
Relatos como o de Ana Maria se repetem Brasil afora, evidenciando o caráter humano da regularização fundiária. Muitos beneficiários associam a escritura a um sentimento de alívio, “tirou um peso enorme dos ombros”, como definiu Maria Tereza, 69 anos, outra moradora ao receber seu título após 25 anos pagando impostos de um imóvel que não era oficial. Há quem compare a conquista a um “presente de Natal”, como declarou William dos Santos Ramires, um contemplado em Sidrolândia (MS) ao fim de duas décadas de espera. “Agora a gente tem certeza que é nosso mesmo, de direito, escritura na mão com a graça de Deus… tinha noite que eu pensava que a casa não era minha e a qualquer momento podia ser despejada. Mas graças a Deus esse dia chegou, agora eu sei que é meu”, comemorou Maria Zilda Escobilha, outra beneficiária ao finalmente receber sua escritura depois de 19 anos esperando.
Além de trazer paz de espírito, a titulação abre horizontes. Em São José (SC), a jovem professora Liriel dos Santos, 21, contou que após ver os pais finalmente com a escritura da casa, sentiu-se motivada a organizar a documentação de seu próprio futuro imóvel. Já em Abaetetuba (PA), a pequena proprietária rural Maria Anália tentou legalizar a posse de seu terreno duas vezes sem sucesso; agora, com o registro em mãos entregue pelo Iterpa (Instituto de Terras do Pará), ela comemora a tranquilidade conquistada: “Esse título representa uma garantia para os meus filhos. Nasci e me criei nesse lugar… Agora, com essa oportunidade, sei que deixarei uma herança para os meus filhos. Estou muito satisfeita”. O brilho nos olhos de quem recebe o documento reflete não só a segurança do lar protegido, mas também a dignidade de ser reconhecido como cidadão pleno, com endereço e patrimônio regularizados. “Receber o título de propriedade na minha porta… o prefeito nos deu não apenas um pedaço de papel, mas também respeito e dignidade”, resumiu Ana Maria, evidenciando que a regularização fundiária devolve a essas famílias algo intangível: orgulho e pertencimento.
Os números reais mostram milhares de famílias saindo da ilegalidade e entrando no mapa oficial das cidades, enquanto depoimentos emocionados revelam que, mais que imóveis regularizados, o que se entrega é cidadania. “A regularização não é só a entrega de um documento para o morador, mas traz desenvolvimento urbano, segurança jurídica, dignidade para todas as famílias”, resumiu o Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação do Estado de São Paulo, Marcelo Branco, e essa visão se confirma a cada nova escritura distribuída. O sonho da casa própria, acalentado por gerações, encontra nos Cartórios um aliado essencial para se concretizar de forma segura e definitiva.
Fonte: AssCom ANOREG/BR