RENEGOCIAÇÃO DE DÍVIDAS EM CARTÓRIOS É SAÍDA PÓS-PANDEMIA


Paula Brito - 21/05/2020

Uma norma editada pela Corregedoria Nacional da Justiça em 27 de junho de 2018, pode ser vital para a retomada da economia brasileira pós-pandemia. Com a grave crise de saúde pública e seus severos reflexos sobre a economia, passa a ser cada vez mais claro que o contingente de famílias afetadas por dívidas no Brasil será enorme e a inadimplência já começa a se fazer presente nas estatísticas oficiais.

Nesse sentido, possibilidades para melhorar a renegociação de dívidas e fomentar a virtualização dos serviços surgem como uma das soluções a serem adotadas para minimizar os efeitos da crise gerada pelo novo coranavírus. Primeira atividade extrajudicial 100% digital do País, os Cartórios de Protesto dispõem de um importante mecanismo para a retomada do crédito: o Provimento nº 72 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Pesquisa do instituto Locomotiva indica que 91 milhões de brasileiros - o equivalente a 58% da população adulta do País - deixaram de pagar em abril pelo menos uma das contas referentes ao consumo de março. O estudo mostra que o não pagamento de boletos como crediários de lojas, conta de luz e até aluguel superam o índice de 30% de brasileiros que deixaram de pagar as suas contas.

Entre as contas atrasadas, carnê e crediário em lojas lideram a lista, com 46% das respostas; seguidas de cheque especial e cartão de crédito (37% cada) e parcelas de empréstimo bancário (36%).

Com relação a outros boletos em atraso, que inclui mensalidades de academia, despesas com manutenção e serviços gerais (com 36% em atraso), o presidente da Locomotiva, Renato Meirelles, analisa que, com o prolongamento da crise, esses gastos serão cortados e a participação desses itens no total de contas em atraso deverá se reduzir.

Não bastassem as dificuldades para quitar as contas do mês de março, estimativas da Locomotiva mostram que no mês de abril também houve dificuldade para pagar os boletos. Enquanto 38% da população atrasou o pagamento de carnês e crediários de lojas, por exemplo, 16% não conseguiu fazer o pagamento desses produtos para os respectivos estabelecimentos. Além disso, também há atrasos em pagamentos como parcelas de bancos, mensalidades escolares, financiamentos de veículos, aluguel e contas de telefone, gás, água e internet.

Para Meirelles, a Covid-19 chegou na reta final de uma das mais longas crises econômicas da nossa história. “Encontrou uma população sem poupança e cada vez menos amparada pelos aparatos de proteção social. Infelizmente a pesquisa joga luz em uma das consequências econômicas mais graves dessa ‘tempestade perfeita’. A total falta de condição de importante parcela da população em honrar suas contas. Quanto menor a renda, maior o endividamento relacionado às contas mais simples, aquelas do dia a dia, como água, luz, aluguel ou carnês”, enfatiza Meirelles.

Segundo a economista da Tendências Consultoria Integrada, Isabela Tavares, o número de março surpreendeu pela magnitude já no início do isolamento social, já que a expectativa era de crescimento da inadimplência ao longo do ano, acompanhando a piora na situação financeira.

“Esse movimento ocorre pela piora intensa das vagas de trabalho. Empresas decretando falência, principalmente as de pequeno porte, outras que não conseguem segurar todo o quadro de funcionários sem fluxo de caixa e pessoas que trabalham com emprego informal e ficam sem renda nesse período de paralisação. Todos esses problemas se refletem no aumento da população desocupada e pioram os ganhos financeiros das famílias. Sem renda e emprego, as pessoas não conseguem quitar suas dívidas e muitas vezes viram inadimplentes”, salienta a economista.

Segundo o juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, Alexandre Chini, hoje o Protesto Extrajudicial alcançou um estado de verdadeiro veículo oficial de recuperação de crédito, prevenindo litígios sobre o ideário jurídico internacional da desjudicialização.

“O Provimento 72 é uma forma de evitar conflitos e ações judiciais ou que possibilite que aquele consumidor tenha a possibilidade de efetuar o pagamento das dívidas de forma parcelada. Acredito que esse avanço ocorrerá com as dívidas ainda não protestadas. Nesse momento de crise, é muito mais relevante você poder renegociar o que ainda não foi declarado no Protesto”, destaca o magistrado.

“Os cartórios de protestos podem promover a composição entre as partes, possibilitando um abatimento no valor do débito, a fim de garantir a manutenção dos empregos, desenvolvimento da atividade econômica interna, sempre se pautando pela solidariedade que o momento preconiza”, explica o advogado e ex-secretário Nacional do Consumidor, Armando Luiz Rovai. “Devem ter um papel fundamental na negociação das dívidas e na proteção da população mais necessitada, fomentando a aplicação de reduções nas dívidas, concedendo prazos dilatados para que os cidadãos possam adimplir com suas obrigações, bem como primando pela não aplicação dos juros e das multas previstas”, diz o advogado.

A norma, que dispõe sobre as medidas de incentivo à quitação ou à renegociação de dívidas protestadas diretamente em Cartórios, pode ser a alternativa à uma demanda que deve ser vertiginosa no período pós-pandemia. Para ser ainda mais eficiente, o Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil (IEPTB/BR) desenvolveu um algoritmo que utiliza a inteligência artificial e data science para determinar a chance de sucesso do pagamento de uma dívida.

“O uso de inteligência artificial e data science tem feito com que as decisões sejam cada vez mais eficientes em vários ambientes, reduzindo os custos das operações, minimizando as perdas, o que tende a tornar o processo bem menos burocrático. No combate à crise, o instrumento do Protesto poderá ser um aliado indicando bons pagadores, sinalizando históricos positivos para tomadores de crédito que poderão auxiliar no processo de retomada da economia, principalmente nos momentos iniciais, onde os recursos forem mais escassos e não houver meios de se massificar as ajudas a todos os agentes econômicos”, relata a professora da Escola de Ensino Superior em Negócios, Direito e Engenharia (Insper), Juliana Inhasz.

“A negociação entre as partes, ainda mais facilitada pela inteligência artificial, é totalmente democrática e muito mais saudável para os negócios de maneira geral”, argumenta o diretor de economia da Associação dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), Roberto Vertamatti.

Para a economista da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio-SP), Kelly Carvalho, a aplicação do Provimento 72 como incentivo para pagamento de dívidas poderá ajudar na retomada, desde que sejam oferecidas condições especiais como parcelamentos e abatimento parcial do valor.

“A partir do Provimento 72/2018 que agregou uma funcionalidade ao serviço de protesto e possibilitou a atuação dos tabelionatos como mediadores para recuperação de dívidas, os credores passaram a contar com mais um conjunto de instrumentos legais para a recuperação de seu crédito, sem precisar buscar outro serviço ou de fazer qualquer outra nova contratação para o recebimento dos valores que lhes são devidos”, explica a economista.

Para o advogado especializado em direito empresarial, Marlon Tomazette, atividades em massa demandarão cada vez mais o uso da inteligência artificial, que tem mostrado resultados muito promissores. “O tempo de uma renegociação pode ser bem diminuído com isso, dando maior efetividade às medidas de proteção ao crédito”, afirma o advogado.

RENEGOCIAÇÕES DE DÍVIDAS

O secretário especial de Defesa do Consumidor de São Paulo, Fernando Capez, diz que as renegociações de dívidas promovidas pelos Cartórios de Protesto serão essenciais para a economia do País. “É muito importante o Cartório, pois a formalização do instrumento do Protesto permite que seja exercido o direito de defesa por parte do usuário, de maneira que a pessoa antes de ter o seu nome inscrito como mau pagador será comunicada por um documento público pelo cartório. Portanto, acho importante esse trabalho dos Cartórios de Protesto para fins de transparência e preservação dos direitos do devedor”, analisa o secretário.

Segundo o professor de finanças do Ibmec, George Sales, o Protesto é meio célere e instrumento de segurança jurídica necessária à satisfação das obrigações dos títulos e documentos de dívida. “Neste sentido o Protesto se mostra como a solução extrajudicial que garante o fomento do mercado, tornando as relações de crédito muito mais transparentes por conta de sua publicidade. Este registro tem como função dar publicidade dos inadimplentes. Esta publicidade, por sua vez, tem como efeito a restrição ao acesso ao crédito e ao financiamento. É na publicidade do Protesto e em seus efeitos que se baseia a eficiência desse instituto”, argumenta o docente.

O cenário de incertezas provocado pelas relações de consumo também faz com que o Protesto ganhe destaque na hora de garantir os direitos do consumidor. Segundo a coordenadora do programa de serviços financeiros do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ione Amorim, as medidas adotadas para a suspensão do pagamento de parcelas de dívidas são extremamente necessárias para socorrer as famílias e empresas. “A possibilidade de firmar acordos sobre as dívidas protestadas poderão contribuir para a redução da inadimplência, o que possibilitará o acesso ao crédito para garantir a retomada econômica”, destaca a coordenadora do Idec.

O secretário Fernando Capez ainda revela que com a crise econômica, todos os contratos de relação de consumo foram afetados, inclusive das instituições financeiras. “Renegociação é necessária porque o coronavírus afetou a base do negócio jurídico. Ela foi sensivelmente modificada. Essa alteração pode ter provocado um desequilíbrio na relação entre as partes. Como há um princípio geral no Direito que veda o enriquecimento sem causa, ninguém pode ter vantagem sobre ninguém. É necessário sim essa renegociação e uma renegociação baseada no princípio da boa-fé objetiva. Ambas as partes se colocando uma no lugar da outra para negociar. Só assim que sairemos da crise”, aponta o secretário.

No entanto, segundo Roberto Vertamatti, como a economia no geral está comprometida, praticamente todos os setores estão com problemas semelhantes, o que levará à postergação de dívidas. “Por esta analogia deveremos ter uma pressão inicial por protestos não tão intensa, ainda que houvesse razões para tal pois a inadimplência será generalizada. De qualquer forma, isto deve ocorrer no início da abertura da sociedade, na sequência, à medida que a economia voltar à normalidade, os protestos vão aumentar”, analisa o diretor da Anefac.

Para o economista da Divisão Econômica da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviço e Turismo (CNC), Fabio Bentes, a CNC propôs aos empresários quatro medidas pontuais para minimizar os impactos da crise, entre manter o contato com clientes, intensificar serviços de entrega, fazer o remanejamento de funcionários e orientá-los em relação aos protocolos de prevenção e saúde. “As próprias instituições e fornecedores têm oferecido possibilidades de negociação, já que a crise não poupou ninguém e eles também devem incorrer em perdas”, afirma.

RETOMADA DA ECONOMIA

“Fomos atingidos por um meteoro”. A frase, atribuída ao ministro da Economia, Paulo Guedes, e dita no final do mês de março reflete bem a conjuntura econômica pela qual o País está passando. Diversos setores da economia já enfrentam prejuízos milionários por causa da pandemia do coronavírus, sendo claro que o plano de resgate não irá conseguir contornar todas as despesas envolvidas. Segundo o Ministério da Economia, as medidas já anunciadas para o combate à crise devem gerar um custo de 307 bilhões aos cofres do governo. Desse total, R$ 285,4 bilhões apenas em 2020.

O rombo na economia faz com que estudiosos e especialistas se debrucem sobre medidas eficazes para resgatar o inevitável colapso econômico. Parte das medidas representa novos gastos públicos, entre os quais, o auxílio emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais e para a população de baixa renda. O impacto da medida é estimado em R$ 98,2 bilhões.

Em nota, o Ministério da Economia disse que “neste momento de dificuldade, a pasta mudou seu foco das reformas estruturantes para as medidas emergenciais, mas que logo depois dessa crise voltará a realizar as grandes reformas que já estavam encaminhadas, e que serão ainda mais importantes e fundamentais para recuperação da economia e a retomada do crescimento do País”.

Enquanto as reformas não saem do papel e a crise do coronavírus assola o País, uma estimativa do Banco Mundial revela que a economia brasileira deve encolher 5% em 2020. De acordo com o Banco, a região está sofrendo fortemente com a crise de Covid-19. Os países da América Latina terão queda de 4,6% no PIB (Produto Interno Bruto), segundo tais projeções.

“Os governos da América Latina e do Caribe enfrentam o enorme desafio de proteger vidas e ao mesmo tempo limitar o impacto das consequências econômicas”, disse em relatório Martin Rama, economista-chefe do Banco Mundial para a região da América Latina e Caribe. “Isso exigirá políticas coerentes e direcionadas em uma escala raramente vista antes”, completou.

Para o pesquisador da FGV IBRE, Marcel Balassiano, o Brasil tem que continuar aumentando os gastos públicos, principalmente nas áreas de saúde, ajudando as pequenas empresas e contemplando a renda da população mais pobre.

“Não é necessário modificar o teto dos gastos, medida importante que o Brasil implementou há pouco tempo. Com o Estado de calamidade pública, é possível fazer esses aumentos no déficit sem alterar o teto dos gastos. O que não pode ocorrer é esses gastos temporários virarem permanentes, como justificativa pelo coronavírus”, diz o pesquisador, que faz menção a medida temporária do “coronavoucher” e sua distribuição para os mais pobres.

Para diminuir o impacto dos efeitos da pandemia causada pelo novo coronavírus sobre a economia brasileira, o Banco Central vem adotando uma série de medidas para promover o bom funcionamento do mercado, sem abrir mão da solidez e da estabilidade do Sistema Financeiro Nacional (SFN).

“A ideia é que os bancos tenham recursosprontamente disponíveis em volume suficiente para emprestar e para refinanciar dívidas das pessoas e empresas mais afetadas pela crise. Ao todo, as medidas anunciadas têm o potencial de ampliar a liquidez do sistema financeiro em R$ 1.2 bilhão, equivalentes a 16,7% do Produto Interno Bruto (PIB)”, destaca o Banco em comunicado.

Segundo o secretário Fernando Capez, a recuperação econômica do País se dará mediante o corte de despesas públicas. “Precisamos reduzir as despesas, uma vez que a receita também encolherá. E isso só pode ser conseguido mediante parcerias público- -privadas e privatização no momento em que as empresas estiverem valendo o suficiente para se caracterizar um bom negócio para o Estado e para o Poder Público”, recomenda o secretário.

De acordo com a economista da Fecomercio-SP, Kelly Carvalho, ainda não há como fazer uma projeção precisa da pandemia na economia brasileira, mas será um impacto negativo. “Muitas empresas, principalmente do varejo físico e serviços, encontrarão dificuldades para se reestabelecerem. Por outro lado, algumas empresas vêm encontrando na crise uma grande oportunidade para empreender, como é o caso do comércio eletrônico”, opina a economista.

FONTE: REVISTA CARTÓRIOS COM VOCÊ


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