Ministro João Otávio de Noronha faz balanço do trabalho na Corregedoria Nacional de Justiça


Paula Brito - 12/09/2018

Durante o período em que esteve à frente da Corregedoria Nacional de Justiça, de agosto de 2016 a agosto de 2018, o ministro João Otávio de Noronha, o sétimo a ocupar o cargo desde sua criação, publicou um total de 15 provimentos disciplinando a atuação das atividades extrajudiciais. Marca que faz com que sua gestão tenha a sido a que mais normativas editou relacionadas aos serviços de notários e registradores.

Em todas elas, o órgão nacional buscou ouvir opiniões de Tribunais de Justiça, Corregedorias Estaduais e entidades de classe, objetivando construir a melhor norma possível, observado os diferentes pontos de vista. Democracia que não impediu que a Corregedoria Nacional exercesse seu papel fiscalizador, inspecionando todos os Tribunais do País, assim como pelo menos quatro unidades extrajudiciais em cada unidade federativa.

Em entrevista à Cartórios com Você, o agora ex-corregedor nacional fala sobre a boa administração e o serviço de excelência prestado pelas serventias extrajudiciais que, somados ao fácil e rápido acesso, devido à alta capilaridade do sistema, têm contribuído de forma direta para o descongestionamento do Poder Judiciário.

Noronha também destaca a realidade dos cartórios e desmente o mito criado de que estas unidades possuem renda milionária. “Criou-se o mito de que todo cartório possui renda milionária e que, por consequência, seria mais um serviço público desnecessário para enriquecimento de quem o compõe”, diz o novo presidente do STJ. “Os dados publicados no sistema Justiça Aberta refletem exatamente o contrário.”

CcV – Como foi o início de sua gestão à frente da Corregedoria Nacional de Justiça?

Ministro João Otávio de Noronha – No início da gestão, determinei o mapeamento das atividades e demandas que são apresentadas à Corregedoria Nacional de Justiça, a fim de otimizar os serviços por área de atuação. Em decorrência, houve a reestruturação das dependências da Corregedoria Nacional, inclusive com a utilização de área do Superior Tribunal de Justiça. O primeiro passo foi reorganizar a equipe de trabalho nos dois locais com servidores do CNJ e do STJ e contratar terceirizados e estagiários.

CcV – E quais ações foram então tomadas pela Corregedoria Nacional?

Ministro João Otávio de Noronha – No tocante ao sistema informatizado (PJe), observou-se a falta de regramento quanto ao fluxo dos processos, o que demandou, em relação à Corregedoria Nacional, uma remodelagem. Hoje, o procedimento é ágil e confiável, pois o novo fluxo otimizou o serviço, além de criar procedimentos impessoais, possibilitando, assim, a continuidade do serviço após a sucessão da equipe e do corregedor nacional de justiça. Os estoques de processos foram reduzidos e as demandas são analisadas em tempo diminuto. Saneadas as pendências iniciais, determinei que os tribunais de justiça dos Estados e do Distrito Federal fossem inspecionados para se ter uma radiografia do Poder Judiciário brasileiro.

CcV – Como avalia os resultados alcançados ao final desta sua gestão?

Ministro João Otávio de Noronha – Em dois anos de gestão, é certo que o Poder Judiciário melhorou. Estabelecemos metas e procedimentos e publicamos provimentos para regulamentar áreas de atuação. Em relação ao serviço extrajudicial, determinei o levantamento das pendências e dos projetos que poderiam ser desenvolvidos, bem como a análise de todos os procedimentos com a participação das corregedorias de justiça e das associações dos serviços de notas e de registro. Após profícuo trabalho em equipe, verificou-se a necessidade de regulamentar alguns pontos importantes para a melhoria do serviço. Mais de dez normativos foram publicados para uniformizar procedimentos dos serviços de notas e de registro no Brasil. Ao fim da gestão, o serviço extrajudicial é hoje referência de boa administração e de serviço de excelência disponível à população, representando grande instrumento de desjudicialização.

CcV – Como avalia a importância dos serviços extrajudiciais para a sociedade brasileira?

Ministro João Otávio de Noronha – A Constituição Federal de 1988 deu às serventias extrajudiciais o status de entidades de extração constitucional sob a supervisão do Poder Judiciário. Assim, sob o controle do Poder Público, a atividade privada delegada deve ter a garantia da publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, nos termos da Lei n. 8.935/1994. Os serviços extrajudiciais, há muito, deixaram de representar a burocracia – retratada em carimbos de documentos – para auxiliar no exercício direto das mais variadas formas de direito pela população em geral. O acesso fácil e rápido, a capilaridade do sistema cartorário e a sedimentação da tecnologia da informação implantada em todo o território nacional pelas centrais eletrônicas contribuem, de forma direta, para o descongestionamento do Poder Judiciário, que deve enxergar na atividade extrajudicial uma parceira para a solução de conflitos. O sistema multiportas proposto pelo novo CPC e pelo Provimento CN-CNJ n. 67/2018 retratam essa parceria. Hoje, as serventias extrajudiciais estão autorizadas a realizar audiências de conciliação e mediação em todo o território nacional, sob a supervisão e credenciamento do tribunal de justiça local, demonstrando que parcerias nesse sentido contribuem para a celeridade da prestação jurisdicional e efetivação dos direitos do cidadão.

CcV – Como vê a importância do concurso público para o desenvolvimento dessa atividade no País?

Ministro João Otávio de Noronha – Além de ser uma exigência constitucional – art. 236, § 3º, da CF/88 –, contribui para a ocupação qualificada das carreiras de notários e registradores na medida em que há crivo semelhante ao imposto à ocupação de cargos de juízes e membros do Ministério Público, que também se submetem a concurso de prova e títulos. O tabelião e o registrador, antes de mais nada, devem ter a independência necessária para o desempenho de suas funções. Não há como conceber que, após 30 anos de vigência da Constituição Federal, uma norma mandamental permaneça sem cumprimento. De toda sorte, a moralização da atividade extrajudicial com a consequente independência funcional dos titulares passa, necessariamente, pelo crivo do concurso público. É o pressuposto básico para o desempenho da função, que, mesmo exercida em caráter privado, não deixa de atender a princípios básicos da administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência. Entender de modo diverso é contribuir para a continuidade de situações inescusáveis como o paternalismo e a ingerência desmedida na livre nomeação de cargos. Existem atos na vida civil que, por lei, exigem o respectivo registro público e a forma de escritura pública. Tais atos não podem ser delegados a quem não detém a devida qualificação para o desempenho das funções outorgadas. O constituinte de 1988 estabeleceu como critério básico para aferição da referida qualificação a prévia aprovação em concurso público – realizá-lo é o mínimo que o Estado deve fazer.

CcV – Pela primeira vez a Corregedoria Nacional estabeleceu metas para os serviços extrajudiciais. Qual a importância dessa iniciativa?

Ministro João Otávio de Noronha – Tanto a fixação de metas quanto a promoção do I Encontro Nacional dos Corregedores do Extrajudicial demonstram a intenção precípua desta gestão da Corregedoria Nacional de Justiça de promover a integração entre a atividade correcional das corregedorias-gerais de Justiça dos Estados e a atividade extrajudicial. É preciso quebrar o paradigma de que a corregedoria é órgão fiscal penalizador de modo a alcançar o ideal de junção de forças a fim de promover o interesse público primário. As metas fixadas pela Corregedoria Nacional refletem essa ideia – demonstrar a importância dos corregedores extrajudiciais para a manutenção e promoção de uma atividade extrajudicial de excelência, voltada para informatização de sistemas e eficiência na prestação dos serviços delegados. Assim, as corregedoriasgerais de justiça, no que tange aos serviços extrajudiciais, deixam de ser órgãos meramente reprodutores de tabelas e planilhas para, de fato, fiscalizar e implementar programas que proporcionem o desenvolvimento da atividade com a transparência necessária. As vinte metas dos serviços extrajudiciais representam o mínimo que pode ser feito e que já vem dando certo em Estados cuja atuação do tribunal de justiça, com a respectiva corregedoria, enseja a satisfação do usuário e a prestação de serviço de excelência, com cartórios bem estruturados, informatizados, com titulares concursados, escreventes preparados e com a confiança nos serviços prestados.

CcV – Um recente Provimento estabeleceu requisitos mínimos para a segurança da informação nos serviços notariais e registrais. Qual a razão dessa normatização?

Ministro João Otávio de Noronha – A ideia é exatamente obrigar as serventias extrajudiciais a se modernizar no sentido de, cada vez mais, promover a informatização dos serviços. Não é compatível com a atual dinâmica das relações jurídicas e do desenvolvimento tecnológico a manutenção de expedientes físicos. A segurança da informação protege os atos submetidos ao registro e ao armazenamento nas serventias extrajudiciais, bem como assegura a segurança jurídica dos dados dos usuários, evitando extravio, compartilhamento indevido, alteração e perda dos atos praticados em formato eletrônico. A facilidade proporcionada pela informatização reclama maior cuidado em relação aos atos extrajudiciais, os quais, embora sejam armazenados pelos titulares dos serviços, permanecendo sob sua custódia, pertencem ao Poder Público como um todo; assim, não podem estar sujeitos aos mais variados tipos de fraude. A propósito, cito a participação da Corregedoria Nacional de Justiça nos encontros da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), em que foram discutidos temas referentes às centrais eletrônicas e ao sistema nacional de registro civil com a finalidade de criar mecanismos que inaugurem nova fase de controle interinstitucional das informações utilizadas para a prática de ilícitos penais, tomando-se por base a atividade dos serviços extrajudiciais referentes à alimentação dos sistemas eletrônicos. Isso também pode ser dito em relação às metas que atribuem às corregedorias-gerais de justiça dos Estados e do Distrito Federal o dever de fiscalizar os atos eletrônicos praticados pelas serventias extrajudiciais.

CcV – As atividades extrajudiciais estão intimamente interligadas com o cotidiano das pessoas. Entre as normas editadas pela Corregedoria Nacional, qual aquela que julga a mais importante?

Ministro João Otávio de Noronha – Não é possível enumerar um único ato normativo. Todos têm sua importância no contexto em que foram propostos. Por exemplo, o Provimento CN-CNJ n. 62, que trata da uniformização dos procedimentos para aposição da apostila, teve grande repercussão ante a desburocratização do antigo procedimento de internalização de documentos produzidos em território estrangeiro. Hoje, a emissão de apostila pelas serventias extrajudiciais é uma realidade em todo o território nacional e referência de eficiência do serviço com preço acessível a toda a população brasileira. O Provimento CN-CNJ n. 63 tratou do reconhecimento socioafetivo, eliminando a situação de marginalização de crianças e adultos que não tinham, nas certidões emitidas pelos registros civis de pessoas naturais, o nome do pai ou da mãe não biológicos. Representa uma conquista dos serviços extrajudiciais. O Provimento CN-CNJ n. 65, que trata da usucapião extrajudicial, e o Provimento CN-CNJ n. 67, que prevê a possibilidade de realização de conciliação e mediação diretamente nos serviços notariais e registrais de todo o Brasil, dispõem sobre situações anteriores que necessitariam do pronunciamento judicial e agora têm solução rápida e eficaz. Portanto, não é possível indicar o normativo mais importante. O que merece destaque é que a Corregedoria Nacional de Justiça buscou a participação efetiva de todas as partes em todos os procedimentos, de modo que a edição dos atos normativos foi fruto dessa atuação conjunta com as corregedorias-gerais e com as associações de classe. A proposta foi não de impor a vontade unilateral do CNJ, mas de construir um arcabouço normativo que, de fato, refletisse os anseios da sociedade e estimulasse a atividade extrajudicial.

CcV – Como vê a questão das mudanças relacionadas ao Direito de Família, as efetivações das uniões homoafetivas e agora a polêmica em torno das uniões poliafetivas?

Ministro João Otávio de Noronha – A discussão acerca da união homoafetiva foi dirimida pelo STF no julgamento da ADI n. 4.277 e da ADPF n. 132. Na verdade, a jurisprudência do STF, do STJ e dos demais tribunais equiparou essa situação às uniões estáveis. A questão da união poliafetiva é mais delicada. Não há uma única relação jurídica estabelecida, e as implicações jurídicas não se resumem à união entre mais de duas pessoas. O caso deve ser melhor discutido nos âmbitos judicial, legislativo e social. Não há como o CNJ, por intermédio de decisões administrativas, sem o crivo jurisdicional ou amparo legal específico, autorizar a prática de todo e qualquer ato. A sociedade precisa amadurecer os conceitos do denominado “poliamor” para que a situação seja reconhecida de forma consciente. Situações previdenciárias, sucessórias, de alimentos e direito de família precisam ser revistas e debatidas. A exemplo do casamento ou da união estável, a união poliafetiva não tem o caráter da perpetuidade. Eventual divisão de alimentos, de direitos sucessórios e de benefícios previdenciários e tantas outras implicações como seriam reguladas? A decisão administrativa não tem esse alcance. Não é atribuição da Corregedoria Nacional de Justiça dispor sobre assuntos cuja discussão não foi maturada no âmbito legislativo, social e jurídico. Apesar da alegação de relação única entre as pessoas unidas de forma poliafetiva, as implicações remetem aos mais variados tipos de relações interpessoais que não foram enfrentadas pela legislação e jurisprudência.

CcV – Diversos atos – antes exclusivos do Poder Judiciário – têm sido delegados às atividades notariais e registrais. Qual a contribuição que esse segmento pode dar à desobstrução do Judiciário quando não se discutem ações litigiosas?

Ministro João Otávio de Noronha – As contribuições são imensas e podem ser constatadas em números. A atuação dos serviços extrajudiciais não se restringe ao desafogamento do Judiciário, mas de todos os setores da administração pública. Por exemplo, por meio do Provimento CN-CNJ n. 66/2018, suspenso pelo STF ante o questionamento da Lei n. 13.484/2017, foi permitido aos registros civis das pessoas naturais a realização de convênios com os órgãos do Poder Executivo, facilitando a emissão de RG, CPF, título de eleitor, passaporte e de tantos outros documentos que permitem o exercício de direitos e deveres na vida civil. O apostilamento, a conciliação e a mediação extrajudiciais são exemplos concretos do que foi feito nesta gestão e deu certo. Os titulares das serventias extrajudiciais são profissionais qualificados, bacharéis em direito submetidos a concurso público nos mesmos moldes dos membros do MP e da magistratura. Dessa forma, considerando cada uma das atribuições a eles legalmente conferidas, é possível o exercício conjunto de atos que contribuam não só para o melhor funcionamento do Poder Judiciário, hoje abarrotado de processos, como para o credenciamento do serviço extrajudicial como atividade técnicojurídica. Assim, as ações que não exijam o crivo jurisdicional devem ser redirecionadas de modo a permitir que o Judiciário se dedique a casos mais complexos que, de fato, versem sobre conflito de interesses qualificado. Em contrapartida, os casos em relação aos quais a lei não exige a intervenção jurisdicional devem ser delegados às serventias extrajudiciais, que têm não só a capilaridade necessária como a qualificação exigida para tratar, da melhor forma possível e de modo muito mais célere, as situações que não envolvam esse tipo de conflito. Quem ganha com essa efetiva cooperação na prestação do serviço público é o particular, tendo em vista a celeridade e o custo dos serviços cartorários em relação aos processos judiciais.

CcV – Como classifica a importância da delegação de atos de usucapião, mediação e conciliação aos cartórios extrajudiciais?

Ministro João Otávio de Noronha – Foram promessas cumpridas na atual gestão. Foi dado um voto de confiança aos serviços extrajudiciais, que aceitaram o desafio e tornaram possível a desjudicialização dessas medidas. Hoje, a prestação dos referidos serviços é uma realidade. Existe o crivo correcional das corregedorias-gerais de justiça dos Estados e do Distrito Federal sob a supervisão da Corregedoria Nacional. São exemplos de medidas que podem ser adotadas a fim de afastar do Judiciário situações que, extrajudicialmente, podem ser resolvidas de forma consensual, sem perda da qualidade técnica ocorrente nos processos judiciais.

CcV – Em um mundo cada vez mais digital, onde as pessoas estabelecem e praticam relações pela internet, como conciliar a necessidade de prestação de serviços eletrônicos com as normas e a segurança jurídica exigida para a prática dos atos?

Ministro João Otávio de Noronha – Reitero o que já afirmei: segurança da informação. É preciso fomentar o desenvolvimento tecnológico das serventias extrajudiciais, exigindo-se adequação à realidade virtual sem perda do foco na segurança dos registros e papéis submetidos a sua custódia. A qualificação registral, quando feita de modo eletrônico pelos titulares, não perde seu valor. De toda sorte, é preciso que as serventias extrajudiciais se modernizem, qualifiquem seus funcionários e disponham de material tecnológico suficiente para garantia da prestação dos serviços que lhes foram confiados. Nesse sentido, vale destacar o empenho das associações de classe, que dão o suporte necessário para esclarecer dúvidas originadas desse novo modelo registral. Os serviços eletrônicos são uma realidade, e não só as serventias extrajudiciais, mas também o próprio Poder Judiciário devem estar preparados para adequar e modernizar suas atividades sem que haja risco do comprometimento da segurança jurídica conferida aos expedientes físicos. O próprio ambiente eletrônico proporciona um controle mais efetivo sobre os dados lançados e facilita o manuseio de informações. Assim, havendo responsabilidade por parte dos titulares dos serviços extrajudiciais e a atuação conjunta das corregedorias locais no desempenho e modernização do aparato hoje existente, a tendência é a dinamicidade e eficiência na prestação dos serviços públicos pelos meios informatizados.

CcV – Um único provimento desta Corregedoria – o que trata dos ofícios da cidadania – ainda está pendente de aprovação. Qual a importância dessa norma para o cidadão das pequenas cidades brasileiras?

Ministro João Otávio de Noronha – Hoje, o maior problema para a efetiva ocupação de todas as serventias extrajudiciais por intermédio do concurso público são as serventias deficitárias. Os registros civis das pessoas naturais são, em sua maioria, serventias que não proporcionam retorno financeiro ante a quantidade de atos gratuitos praticados. Em contrapartida, são os únicos serviços extrajudiciais que têm, sob sua tutela, as pessoas físicas em si. Sua importância é tamanha que a lei exige que, em toda municipalidade, haja ao menos uma serventia responsável pelo registro civil. Uma forma de contornar essa discrepância em relação às demais atribuições dos serviços extrajudiciais é confirmar a importância conferida à atividade do registrador civil. Isso veio com a Lei n. 13.484/2017 e com Provimento CN-CNJ n. 66/2018. A lei e o normativo conferiram aos registros civis das pessoas naturais o status de ofícios da cidadania, o que, de fato, são uma vez que todo e qualquer ato relacionado ao exercício da personalidade do indivíduo passa, necessariamente, pelo crivo do registro civil. O provimento veio para regular as hipóteses já previstas em lei e que, de certa forma, deram certo em determinados Estados da Federação. São Paulo e Rio de Janeiro já estabeleciam convênios que proporcionavam o compartilhamento de dados entre órgãos públicos e serventias extrajudiciais, permitindo a comunicação imediata e a efetiva prestação dos serviços públicos. A liminar concedida na ADI n. 5.855/DF tem por fundamento a inconstitucionalidade formal da lei por vício de iniciativa. O provimento foi editado na tentativa de suprir tal lacuna, uma vez ser oriundo do Poder Judiciário. A situação ampara-se na possibilidade de prestação de serviços públicos diretamente nas serventias extrajudiciais, o que evitaria a demora na liberação de documentos civis que, em sua maioria, têm como parâmetro os dados coletados pelos registros civis em todo o território nacional.

CcV – Esta norma então facilitaria a vida do cidadão brasileiro?

Ministro João Otávio de Noronha – Hoje, com o Provimento CN-CNJ n. 63, as certidões de nascimento em território nacional já saem com o número do CPF, gerado eletronicamente pelo compartilhamento de sistemas entre a Receita Federal do Brasil e a CRC-Nacional. Não seria mais prático o indivíduo, uma vez registrado, em vez de sair do registro civil tão somente com o número do CPF, saísse também com as impressões digitais, deixando o local com a certidão de nascimento, com o CPF e com o DNI? Nota-se que não há conflito de atribuições, pois o número é gerado pela Receita Federal e está cadastrado nos sistemas de fiscalização desse órgão. Assim, uma vez gerado o número de CPF – que, segundo estudos, servirá de base para a implementação do documento nacional de identificação –, o interessado poderia retirar o documento diretamente no registro civil das pessoas naturais em que o registro foi efetivado. A mesma ideia seria estendida aos casos de passaporte, CNH e de tantos outros documentos que exigem do cidadão o deslocamento de casa, o enfrentamento de filas, o agendamento de horários, etc. Iniciativas como essa confirmam a desburocratização que o Brasil tanto busca em todos os setores. Tem-se, na verdade, uma otimização dos serviços, barateamento de custas e celeridade no exercício da prestação de serviço essencial. Existem mecanismos para a imediata implementação desse tipo de orientação. Há o comprometimento dos registradores civis e o apoio dos órgãos públicos envolvidos, que poderiam convergir sua atenção e esforços para o desempenho de sua atividade fim sem se preocupar com a atividade delegada. Contudo, é necessário aguardar a posição que será adotada pelo Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.

CcV – São cada vez mais comuns as inserções de percentuais sobre os serviços notariais e registrais, na maioria das vezes destinados ao Poder Judiciário. Como avalia essa tendência de taxação sobre os serviços extrajudiciais que se reflete no aumento do custo ao cidadão?

Ministro João Otávio de Noronha – Todo custo deve ter sua contrapartida. O STF já decidiu que os emolumentos têm a natureza de taxa; portanto, são tributos vinculados por excelência. Nesse sentido, o embutimento de valores nos emolumentos não deve ter a finalidade de angariação de fundos nem de arrecadação. Pelo contrário, deve refletir o exato custeio do serviço prestado, com a correspondente remuneração do titular da serventia extrajudicial. Criou-se o mito de que todo cartório possui renda milionária e que, por consequência, seria mais um serviço público desnecessário para enriquecimento de quem o compõe. Os dados publicados no sistema Justiça Aberta refletem exatamente o contrário. Hoje, apenas 5% dos cartórios em todo o território nacional têm renda semestral acima de R$ 1 milhão (dados do segundo semestre de 2017). Cerca de 75% desse valor é destinado a repasses e custas para manutenção da serventia; apenas 25% é revertido para o titular dos serviços. Em determinados casos, de fato, há abusividade nos repasses, principalmente quando se levam em consideração instituições fora da estrutura organizacional do Poder Judiciário cuja atuação extrajudicial é praticamente nula e que, mesmo sem a necessária pertinência temática, recebem parcela significativa dos emolumentos. As situações devem ser questionadas e tratadas de forma transparente no tribunal de justiça local, estabelecendo-se diálogo entre o Poder Judiciário e as associações para análise da real necessidade desse sobrepreço. Afinal, o maior prejudicado é o usuário do serviço, que, muitas vezes, não tem consciência do que está sendo custeado. Devem ser estabelecidos mecanismos de transparência e de controle da destinação dos valores pagos, bem como deve haver análise criteriosa pelo tribunal de justiça quando da elaboração/alteração das leis que regulam os emolumentos extrajudiciais. Não havendo justificativa para a taxação, os valores devem ser extirpados do quantum final. Não é concebível que parte da administração pública se valha de parcela dos emolumentos sem que haja contrapartida em relação à atividade extrajudicial desempenhada, ainda mais quando esta atividade também sofre com o excesso de imposição de gratuidades.

CcV – Como equilibrar a assistência às pessoas hipossuficientes com a necessidade de se estabelecer o equilíbrio econômico-financeiro de delegações privadas?

Ministro João Otávio de Noronha – A questão da gratuidade também merece atenção por parte dos órgãos regulamentadores. Os hipossuficientes necessitam ter o mesmo acesso que têm os mais abastados, porém o Estado precisa criar contrapartidas para que haja a quebra do ciclo vicioso que ocorre nas serventias extrajudiciais, principalmente com relação à distribuição de atribuições. Iniciativas como a do Provimento CN-CNJ n. 66/2018 são exemplos do que pode dar certo em curto tempo. Não são raras as vezes em que há conflitos no próprio âmbito institucional, de modo que a destinação ou atribuição de determinados atos a certas categorias de serviços extrajudiciais causa maior constrangimento do que a própria gratuidade prevista em lei. Com a edição do Provimento CN-CNJ n. 66/2018, várias foram as impugnações das próprias entidades de classe que se sentiram desprestigiadas ante a atribuição exclusiva das atividades aos registros civis das pessoas naturais. Isso também ocorreu quando da edição dos Provimentos n. 58 e 62, que trataram do apostilamento e estabeleceram que cada serventia extrajudicial somente poderia apostilar atos condizentes com sua atribuição legal. Em situações como essas, os serviços extrajudiciais devem trabalhar em conjunto, e não separadamente. Há uma mudança de paradigma no sentido de colocar a atividade extrajudicial como alternativa para dar vazão aos serviços que assoberbam o Estado. Uma vez adquirida a confiança do Poder Público como um todo, refletida no desempenho, com excelência, das atribuições delegadas, cada vez mais será reconhecida a importância de tais atividades. Contudo, para que isso ocorra, é preciso que haja maior interação entre registradores e notários na busca do bem comum, que é o desenvolvimento da atividade extrajudicial como algo uno e imprescindível em sociedades complexas como a brasileira.

CcV – São diversas as ações no CNJ envolvendo julgamento de temas extrajudiciais. Não seria importante que o órgão contasse com um notário e registrador em seus quadros?

Ministro João Otávio de Noronha – De fato, a matéria notarial e registral abarca um percentual significativo dos procedimentos instaurados no Conselho Nacional de Justiça. Existem propostas de emenda constitucional acerca do tema e aguarda-se o posicionamento do Poder Legislativo sobre o assunto.

CcV – A questão dos rendimentos de notários e registradores ganha ainda mais relevância quando o CNJ divulga ranking dos cartórios mais rentáveis. Nesses rankings de rendimento não deveriam também constar os repasses feitos aos órgãos públicos previstos em lei? Não deveriam ser divulgados rankings também dos rendimentos das pequenas serventias espalhadas pelo País?

Ministro João Otávio de Noronha – A Corregedoria Nacional de Justiça vem, durante o biênio 2016/2018, tentando conscientizar a população de que a rentabilidade divulgada no sistema Justiça Aberta não condiz com a realidade enfrentada em todo o território nacional, pois, no referido sistema, não se indica o percentual significativo de repasses. A divulgação deve ser transparente e abarcar todas as serventias extrajudiciais sem distinção. Há proposta de alteração da forma de publicação no Justiça Aberta, permitindo a identificação dos repasses e a inclusão de campos próprios para demonstrar como é feita a arrecadação dos emolumentos.

CcV - Qual a sua expectativa para assumir a presidência do STJ e quais planos possui para essa Corte?

Ministro João Otávio de Noronha - É uma satisfação assumir a presidência do STJ, casa que me recebeu muito bem e local onde muito aprendi e ainda aprendo, pois é a escola em que tive a satisfação de conviver com grandes personalidades: Sálvio de Figueiredo Teixeira, Ruy Rosado de Aguiar e Nancy Andrighi. Aqui também sofri, porque tornar-se homem público neste País é expor-se a comentários injustos e justos de uma mídia às vezes irresponsável e às vezes correta; no segundo caso, preocupada em narrar os fatos, e não em traçar a versão dos fatos. Vou gastar minha energia para resgatar o prestígio do Superior Tribunal de Justiça como corte superior que tem a missão de dar a última palavra no tocante ao direito federal infraconstitucional, sem a ninguém consultar, a não ser a consciência de seus membros; uma corte cujo dever é garantir a segurança jurídica a um País que vive conturbada fase econômica e política. Nesta hora, avulta a importância do papel do STJ como intérprete último das leis federais. Não pretendo rotular minha gestão como presidente disso ou daquilo. Só serei presidente e cumprirei todos os meus deveres. Buscarei incessantemente a eficiência, ou seja, quero ser presidente do Tribunal mais eficiente do País: eficiente no julgamento, eficiente na publicação dos acórdãos, eficiente na gestão da Justiça brasileira. Para isso, precisaremos modernizar, precisaremos de um choque comportamental e cultural. É hora de investir na inteligência artificial para acabar com os estoques de recursos repetitivos. Tenho o compromisso de criar, vinculada diretamente à presidência, uma secretaria específica com o propósito de trabalhar com a engenharia de informática necessária à implementação do nosso projeto. Acredito também que é hora de repensar a metodologia de nossos julgamentos, ou seja, implantar o julgamento virtual. É hora também de privilegiar a eficiência dos bons servidores. É evidente, presidente é apenas aquele que conduz a casa, de modo que nada poderei desenvolver ou realizar sem a colaboração efetiva de meus pares. Portanto, irei trabalhar para a modernização e, sobretudo, para o reconhecimento e valorização daqueles que aqui constroem o dia a dia do STJ, quer nos gabinetes quer na área administrativa. Estou certo de que o sucesso da gestão será o sucesso de toda a equipe de servidores e de ministros do Superior Tribunal de Justiça. Juntos, tudo faremos para que o STJ continue a ser a esperança de justiça e de segurança jurídica.

FONTE: REVISTA CARTÓRIOS COM VOCÊ


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