A segurança é a segunda prioridade do ser humano, segundo a pirâmide hierárquica de necessidades de Maslow. Cabe, então, a pergunta: você tem filhos? Ou algum patrimônio, como casa, carro ou negócio? Pois bem. Você se sentiria seguro(a) se alguém pudesse levar seu filho de você, apenas portando uma declaração que este alguém (e só ele) alegasse que foi você que assinou? Ou que sua casa, seu carro ou seu negócio pudessem ser transferidos a qualquer pessoa sem que houvesse algum oficial público zelando para que você efetivamente participasse dessa transferência e que isso fosse feito com segurança? Ou ainda, você gostaria de se casar com alguém que, depois, você descobrisse que já era casado(a)? Ou ter seu nome apontado como devedor, sem que tivesse antes sido cientificado de que alguém diz que você está lhe devendo algo?
Trago estas questões porque tenho periodicamente me surpreendido com manifestações públicas completamente equivocadas a respeito de mecanismos de atribuição de segurança jurídica às pessoas. Como no Brasil a educação (desde a fundamental até a pós-graduação) não recebe os investimentos desejáveis e necessários, deixando nossa capacidade de compreensão e de discernimento do básico muito prejudicada (e por vezes extremamente deficiente) já que nos faltam conhecimentos essenciais para a defesa de nossos interesses mais fundamentais (como nossa segurança), é bom tratar do óbvio, para não sermos feitos massa de manobra.
Em todo o mundo o Estado dota algumas pessoas de poderes para intervir nas relações humanas, de modo a garantir segurança, autenticidade e eficácia aos seus atos. Assim porque estes atributos são fundamentais para que as relações entre as pessoas sejam estáveis, para que os contratos sejam cumpridos, para que as situações de cada pessoa e de cada empresa somente sejam alteradas na forma da lei e de modo previsível. Ou seja, para que as pessoas tenham tranquilidade em suas vidas. Essas pessoas assim “empoderadas”, na maioria dos países, de acordo com mecanismos que variam de acordo com a cultura de cada um deles, são designadas como notários, registradores ou conservadores. No Brasil eles são designados como tabeliães ou notários e registradores ou oficiais de registro. E para desempenharem suas atividades, aqui no Brasil, são aprovados em concursos públicos organizados pelo Poder Judiciário e se organizam em unidades que nos habituamos a chamar de cartórios extrajudiciais.
Portanto, há atividade registral e notarial em praticamente todos os países. Cartório, portanto, não dá só no Brasil, não é jabuticaba. Não é empresa. É o lugar onde notários e registradores, como particulares, exercem atividade pública extrajudicial, para garantirem segurança jurídica a diversos atos das vidas das pessoas (esta é sua atividade fim, não o lucro; o lucro é consequência). Na Espanha, por exemplo, os cartórios são chamados de notarías ou registros.
Em tempos de crise econômica e de áreas movediças na política, publicam-se matérias e matérias a respeito da arrecadação dos cartórios e fala-se repetidamente que são os cartórios a razão da burocracia que assola o cidadão e os negócios. Mensagens subliminares de relação custo/benefício ruim.
Comecemos, então, a tratar do tema dinheiro. Os valores cobrados pelos cartórios são fixados em lei estadual. O tabelião ou registrador não pode cobrar além ou aquém do que determina a lei. Se assim procederem podem até mesmo perder a delegação (o cartório). Você sabe de algum caso? Foi vítima de algo nesse sentido? Denuncie ao Poder Judiciário que fiscaliza os cartórios.
Dos valores arrecadados, algo em torno de 50% (a depender do Estado), é destinado a outras entidades públicas. Isso quer dizer que, além dos valores de seus orçamentos ordinários, vários entes ainda recebem uma parte dos valores que você paga quando usa as atividades dos cartórios. O Poder Judiciário recebe uma parte desses valores, porque é quem fiscaliza as atividades dos notários e registradores. Mas ainda são beneficiados Prefeituras Municipais (por meio do ISS), Defensorias Públicas, Ministérios Públicos, Santas Casas de Misericórdia e daí por diante.
Além disso, porque consta na Constituição Federal que ninguém (independentemente da condição econômica) deve pagar pelo registro de nascimento de seu filho, ou pelo registro da morte de quem quer que seja, nem pelas certidões de tais atos, ou porque uma lei federal prevê que quem se declare pobre não precisa pagar para se casar, de todos ao valores pagos pelos usuários do extrajudicial, uma parcela se destina à compensação dessas gratuidades.
Quanto ao percentual que fica nos cartórios, ele se destina ao custeio de toda a atividade extrajudicial, ou seja à remuneração, encargos e benefícios dos mais de duzentos mil funcionários diretos, a manutenção da estrutura física e digital, serviços terceirizados, locação de prédio, guarda e conservação do acervo, etc., já que o Estado não responde por quaisquer despesas dos cartórios. O que sobrar é remuneração do notário ou registrador, que, obviamente, pagará imposto de renda (como pessoa física) sobre isso. Férias, décimo terceiro salário, licença prêmio, aposentaria especial, auxílio moradia, auxílio creche, etc.? Não existem, porque notários e registradores não são funcionários públicos, nem estão dentro da estrutura do Estado. Não custam um centavo ao Estado, pois são remunerados pelos usuários na proporção dos atos que praticam e pelos quais são responsáveis pessoalmente; e na medida de sua eficiência: se a gestão for ruim, lhes renderá menos ao final de cada mês.
Apesar disso, segundo o relatório Doing Business, do Banco Mundial, o custo de transferência de um imóvel nos cartórios do Brasil (escritura + registro) é o mais barato do mundo. Faça uma gentileza: veja quanto você pagou pelo seguro de seu carro ou moto da última vez e verifique qual o valor do imóvel que você poderia adquirir com o registro, pelo mesmo montante (pagando somente uma vez por isso, e não anualmente), para estar protegido perenemente. As tabelas de valores dos atos que praticamos são públicas. E tire suas conclusões.
Quanto à burocracia, é importante anotar que os cartórios cumprem a lei. Se há burocracia, é porque a lei assim exige. Não são os registradores ou os notários que criam exigências. Ao contrário, nós, registradores e tabeliães, fazemos inúmeras sugestões de alterações de leis para facilitar a vida da população e a nossa (já que fazemos parte dessa população que sofre com exigências sem sentido).
Como cartórios cumprem a lei, são “chatos”, especialmente neste país de lava-jatos.
Mas o cidadão não é tolo. Pesquisa do Datafolha identificou que para os usuários do extrajudicial (quem conhece as atividades, portanto), dentre as instituições públicas e privadas, os cartórios são a mais confiável e a mais séria de todas. Também a que presta os melhores serviços. Por isso, e apenas por esse fato relevante, os cartórios têm recebido novas atribuições legais. O legislador tem buscado mecanismos para dar mais e mais autonomia ao cidadão, para libertá-lo das amarras de um Estado inflado, onde a eficiência não é o carro chefe. E na medida em que notários e registradores têm demonstrado competência e eficiência no desempenho dessas novas atividades, outras lhes têm sido conferidas, na esteira do que têm feito vários outros países.
Exemplos não faltam: desde a retificação do registro de imóveis, passando pelas escrituras de inventário, separação, divórcio e partilha, protesto de dívidas públicas, atas notariais, emissão de CPF e de CNPJ, até a usucapião judicial e a regularização fundiária. Milhões de brasileiros puderam, desde 2004, satisfazer seus interesses legítimos de forma rápida, menos custosa e com a mesma segurança que lhes oferecem as ações judiciais.
O aumento do faturamento, portanto, apesar de incontáveis atos gratuitos que praticam sem qualquer compensação, é consequência do bom desempenho dos notários e registradores nas atividades que lhes são atribuídas. Aliás, como buscado por qualquer particular no desempenho de sua atividade profissional.
Fica, então, o discurso flácido e repisado da “burocracia cartorial”, sintetizado em propostas de subtração inconsequente de mecanismos de segurança que visam a proteção do mais fraco: o cidadão. Esse discurso tem servido ora para fins eleitoreiros, ora para as estratégias de organismos privados que querem levar para si atividades que entendem lucrativas, desde que não sejam fiscalizadas pelo Judiciário, nem tenham sua remuneração fixada em lei, nem sejam normatizados pelo Poder Público (ou seja, o lucro sem controle).
Eu costumo dizer que segurança jurídica é como o ar. Quando ela existe, você sequer se lembra dela e vive em paz. Mas como o ar, se lhe faltar, sua angústia será imensa.
Voltemos, então, ao início deste texto: você se sentirá mais seguro se atividades públicas hoje desempenhadas pelos cartórios, que são fiscalizados pelo Poder Judiciário, forem destinadas a entidades privadas, sem esta fiscalização? É bom refletir.
Patricia André de Camargo Ferraz é registradora em Diadema-SP, Bacharela em Direito pela USP, Mestre em Direito Público pela PUC-SP
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